A cacofonia frente a ausência | Crítica de ‘Remendo’ (2022), de Roger Ghil (GG)

por Gabriel Araújo | Sat Jan 28 2023 18:25:38 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

 

Still de Remendo

 

Remendo (2022), filme de Roger Ghil (GG) exibido na Mostra Foco da Mostra de Cinema de Tiradentes, me parece um bom exemplo para pensar a “potência de expansão infinita” (FREITAS, 2018) presente nas obras do cinema negro brasileiro contemporâneo. Entre estéticas e narrativas que podem facilmente se encaixar tanto na comédia quanto na novela, o curta de Vila Velha encontra espaço para uma experimentação com a imagem e o som capaz de expandir as experiências em torno da obra e das ideias suscitadas por ela.

O filme apresenta os fragmentos do cotidiano de Zé (Elídio Netto), homem negro de meia idade que vive consertando e remendando objetos e eletrodomésticos – a bicicleta quebrada do início do curta, a geladeira da mulher que se mudou para o bairro e os sentimentos, seus e dos outros, que rondam aquela vida solar cheia de calor e cerveja.

Uma conversa em específico ajuda a compreender os possíveis traumas sobre os quais o filme se debruça. Sentados numa mesa de bar, iluminados pela luz roxa do ambiente simples, Zé escuta um caso contado pelo personagem interpretado por Markus Konká. O segundo, que trabalha no cemitério, narra a história de um homem que sempre vai depositar flores para o amado morto há mais de 10 anos. “Já tirei os ossos do homem dele todo, mas ele continua indo lá”, o coveiro conta, “homenagear o vazio”.

Talvez frente ao vazio que de alguma forma pulsa em Zé, GG escolhe povoar essa história com uma polifonia (um mutirão, quiçá, para fazer jus à temática da Mostra de Tiradentes deste ano) de fotografias, músicas e barulhos diversos, abrindo espaço até para um breve gameplay do clássico Sonic. Parece evocar a montagem do clássico Ela Quer Tudo (Spike Lee, 1986), como lembrou a curadora Mariana Queen Nwabasili, e materializa suas referências e colagens em tela, estampando capas de disco e imagens de arquivo de modo complementar à narrativa. É capaz de juntar, por exemplo, “Telephone”, de Lady Gaga e Beyoncé, ao reggae de King Tubby, misturando sensualidade, prazer e solidão numa cena que aprofunda a relação da espectatorialidade com o protagonista.

 

Cena de Remendo

 

O posicionamento de câmera e a escolha de plano em determinadas cenas também produzem semelhante ideia de proximidade, especialmente nas conversas entre Zé e sua mãe. Mais de uma vez, a câmera parece estar colada nas costas de Zé, enquadrando sua silhueta e desfocando o segundo plano. A estratégia não só colabora para esconder o rosto da mãe, que é revelado ao fim de forma significativa, como propõe uma empatia com esse homem, suas vontades e aflições.

Pois, enquanto elabora uma narrativa sobre cura sem necessariamente precisar nomear esse processo, Remendo propõe um universo coeso baseado na cacofonia. Mantém a ambivalência própria de uma história múltipla, com personagens que apresentam complexidade mesmo com pouco tempo de tela, mas costura discursos diversos como quem remenda uma colcha de retalhos. Saúda os seus mais velhos, discute liberdades sexual e de gênero, e reforça, pela imagem e pelo som, aquilo que a palavra sozinha simplesmente não seria capaz de entregar. 

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FREITAS, Kênia. Cinema negro brasileiro: uma potência de expansão infinita. In: SIQUEIRA, Ana, et al. Festival Internacional de curtas de Belo Horizonte (catálogo). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2018.

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