“Nunca foi sobre a conquista de Marte”: uma conversa com Gabriel Martins

por Lorenna Rocha | Fri Apr 14 2023 17:49:36 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Esta conversa foi realizada durante o Iº Encontro de Festivais Ibero-Americanos de Cinema, em Porto Alegre (RS), na última semana de março de 2023. Na ocasião, Marte Um (2022) foi exibido durante a programação do evento e o diretor Gabriel Martins participou de uma das rodas de conversa organizada pela Fundacine e Cinemateca Capitólio. Após a circulação do filme em festivais e salas de cinema de várias partes do Brasil e do mundo, o realizador mineiro compartilha sobre o processo de criação e distribuição de seu primeiro longa assinado individualmente, além de suas motivações e escolhas para a construção da linguagem de Marte Um

Lorenna Rocha: Gabito, gostaria de te ouvir sobre o processo de concepção de Marte Um e a relação dele com o projeto Longa Afirmativo (2016), edital que teve como objetivo financiar projetos autorais de longa metragem assinados por diretores e diretoras negras brasileiras. Na época de lançamento do filme, a rememoração do edital surgiu como uma ferramenta importante, não só para despertar atenção e intensificar a relevância de Marte Um, mas para defender a continuidade de políticas de ação afirmativa no audiovisual brasileiro. 

Gabriel Martins: Marte Um surge como ideia por volta de 2014. Quando o edital chegou, estava prestes a escrever o roteiro. Coloquei toda minha atenção nessa oportunidade. De certa forma, tornou-se nossa grande oportunidade, porque foi o único dinheiro que Marte Um recebeu. No processo de finalização tivemos parceria com o Canal Brasil, mas o orçamento robusto veio do Longa Afirmativo. Penso que o edital deu luz a um filme que poderia não ter tido chance em outros com foco em longa metragem naquele momento. Na época esse havia sido nosso maior orçamento e continua sendo em relação aos filmes que dirigi: R$1.250.000,00. Marte Um foi realizado apenas em 2018, por questões burocráticas, mas também porque estávamos concentrados em outros dois projetos nesse meio tempo: Temporada (André Novais Oliveira, 2018) e No Coração do Mundo (Gabriel e Maurílio Martins, 2019). 

Quando olhamos em retrospecto para os filmes que foram contemplados no edital, podemos dizer que, à sua maneira, cada um deles obteve sucesso. Um Dia Com Jerusa (Viviane Ferreira, 2020) e Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020) são filmes que tiveram uma boa repercussão crítica e tornaram-se acessíveis em canais de streaming: o primeiro na Netflix, o segundo na Globoplay. Em termos simbólicos e de bilheteria, Marte Um foi o que conseguiu ter uma repercussão maior. No entanto, nenhum dos três ficaram engavetados após a realização. Pelo contrário: movimentaram a cadeia produtiva e marcaram pontos históricos. De lá para cá, o painel do cinema brasileiro mudou radicalmente. Mais pessoas estão produzindo, mais projetos existem. É por isso que um edital como esse precisa retornar.

Lorenna Rocha: Marte Um inicia sua trama anunciando um período histórico: a eleição de Jair Messias Bolsonaro (PSL) em 2018. O filme foi gravado um pouco depois desse marco temporal e esse evento da história política contemporânea do Brasil parece anunciar uma série de traumas que atravessam os personagens. Só que a apatia da família parece vir de antes, né? Penso, por exemplo, no Golpe de 2016 contra o governo da Dilma Rousseff (PT). Você percebe algum tipo de reverberação simbólica, emocional ou material do governo Bolsonaro em Marte Um

Gabriel Martins: Não dá para dizer que construi esta narrativa pensando na presença de Bolsonaro enquanto um fato político para o Brasil, porque filmamos Marte Um duas semanas depois dos resultados da eleição de 2018. Ele não havia tomado posse. No entanto, o filme tem um espírito que desencadeia no Bolsonaro, porque Marte Um aborda questões sobre comunicação intergeracional, de alguns medos que fazem parte da sociedade: medo de reunir-se, de dar as mãos em público sendo uma garota lésbica. Acredito que há um estado de espírito brasileiro que passa pelo sonho do Deivinho (Cícero Lucas), pelas tensões de classe que tem no prédio do Wellington (Carlos Francisco) e até mesmo nos trabalhos domésticos da Tércia (Rejane Faria). Sem dúvida, algumas evidências de Brasil foram sendo alimentadas na minha cabeça entre 2014 até a feitura do filme. Senti e vivi isso. Vi famílias rompendo relações. Temperar a história com o lugar da política brasileira nos contextos familiares era algo que me interessava. Entretanto, nunca achei que o filme era sobre isso. 

Quando o filme é lançado em 2022, ele torna-se mais próximo dessa energia, até pela presença imagética de Bolsonaro em Marte Um. Os sentimentos ficaram amplificados, exacerbados, depois dos anos desse governo e da pandemia de COVID-19. Esses fatos políticos fizeram com que vários significados da história do filme se tornassem mais estratosféricos. O final da trama é muito bonito, mas é meio trágico. O que me faz pensar que Bolsonaro não é só um fenômeno de 2018, mas algo existencial do nosso país. Essa atmosfera foi se desenhando e essas questões inevitavelmente apareceram na construção de Marte Um.

Lorenna Rocha: Uma atmosfera particular também se desenhou no momento em que o filme foi lançado, né? Não só ano de eleição presidencial pós-Bolsonaro, mas do retorno de Lula à política brasileira. Esse imaginário do “esperançar” veiculado durante a campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) dialogou bastante com o filme. A força de Marte Um se fez nesse terreno e, de certa forma, as pessoas o receberam com isso em mente. Ontem, numa conversa de bar, comentei que se o filme tivesse sido lançado antes o impacto seria radicalmente diferente.

Gabriel Martins: Total! Com certeza!

Lorenna Rocha: É muito instigante pensar como o tempo pode ser bom ou ruim para um filme…

Gabriel Martins: É curioso pensar nisso, porque, na minha percepção, a eleição atrapalharia a circulação do filme. Por isso, lançamos ele em agosto de 2022. Teve até algum momento que pensamos em lançá-lo um pouco depois, mas eu acreditava que quando chegasse em outubro o filme já teria saído de cartaz, começaria a eleição e ninguém ia lembrar de Marte Um. Foi o contrário: o momento e todo aquele clima fez com que ficássemos seis meses em exibição. Quem iria aos cinemas quando as pessoas estavam querendo falar de política? Só que aconteceu tudo junto, o timing não poderia ser mais perfeito para nós.

Lorenna Rocha: Queria retomar algo que você falou sobre comunicação intergeracional. Fico com a sensação que o filme tem o silêncio como ferramenta para lidar com as relações. Bom, queria te dizer que, de primeira, tive uma relação muito ruim com Marte Um. Mas, às vezes temos que assistir às coisas mais de uma vez. [risos] Há uma cena que havia passado despercebida por mim, aquela do Renato Novais explicando na sala de aula como um vulcão entra em erupção. Não por acaso temos um plano fechado na maquete do professor: o coração de Marte Um está ali. Todo mundo está à beira de uma explosão, né? Na primeira vez que assisti ao filme, fiquei incomodada com o modo como os conflitos eram apresentados. Eles pareciam ser rapidamente abandonados, nada era dialogado de maneira frontal entre os personagens. Só que, nessa última vez, me atentei melhor ao corpo, aos gestos dos personagens, a como eles comunicam bastante em seus silêncios. Numa leitura inicial, parecia que algo estava faltando, sabe? Nesse sentido, gostaria que você comentasse sobre o processo de elaboração dos traumas familiares através do silêncio. Gostaria de entender melhor como você percebe essas tensões entre os personagens e o que motiva a escolha da linguagem do silêncio no filme.

Gabriel Martins: A família do meu pai tem o comportamento de empurrar muitos problemas para debaixo do tapete. Não é do quebra pau, nem do barraco. Minha mãe sempre foi mais de falar sobre as coisas, mas o meu pai guarda muito e herdei isso de alguma forma. Acho que há muitas famílias brasileiras, famílias negras, que operam assim. O racismo no nosso país é assim também, um tabu. Quando falamos de “negro” e de “branco” todo mundo muda a postura, é tenso. Brinco que essa coisa de varrer o racismo para debaixo do tapete criou montanhas. Minas Gerais, esse estado montanhoso, tem um pouco disso: o mineiro tem esse jeito meio conservador de ser, meio depurado de falar sobre alguns temas. Acredito que esse comportamento cinematográfico é uma evidência dos traumas daquilo que não é dito. Tércia é uma personagem que fala sobre as questões. Sempre a vi como alguém que coloca as coisas para a família, mesmo estando no centro do trauma, que diz respeito à minha tentativa de minar essa personagem de uma certa alegria natural que ela tem, que vemos na cena da festa, na forma dela narrar os acontecimentos. De repente, ela se depara com algo que ela já não tem tanto controle. 

Achava muito importante ter esse conceito central para essa mulher negra e diarista. Ela representa a si mesma, tem subjetividade, mas de alguma forma é também uma imagem da “Grande Mãe Preta Brasil”. É uma mãe preta em crise, porque está o tempo todo precisando cuidar do Brasil. Às vezes, ela simplesmente precisa dormir, cuidar dela mesma, mas não tem muito essa chance. Acho que esses silêncios se manifestam como aquilo que não movimenta as coisas. No filme, de maneira geral, os conflitos só “se resolvem” quando são ditos, colocados. Quando Tércia diz que tá viva. Quando Eunice (Camilla Damião) fala para Hélio que ele precisa pedir desculpa a sua namorada. Quando Deivinho compartilha seu sonho com todos. O silêncio é a maneira como o filme expõe seus conflitos, entendendo que ele faz parte do processo de formação social daquele núcleo familiar.

 

Rejane Faria e Carlos Adriano em Marte Um (2022)

 

Lorenna Rocha: É legal perceber sua busca pela construção de personagens ambivalentes. Fiquei pensando como essa dubiedade é criada em Marte Um através da linguagem cômica. Dentro da história do cinema brasileiro, pessoas negras têm uma relação forte com isso. Penso em Grande Otelo, por exemplo. E parece que o cinema negro brasileiro contemporâneo tem colocado isso para debaixo do tapete. Você falando da Tércia, dessa representação da “mãe preta brasileira”, acabo pensando como existe uma certa expectativa para que ela seja uma “negrona empoderada”. Parece que estamos cada vez mais nos encaminhando para os “estereótipos positivos”, “estereótipos da positivação”. Representações que são bem neoliberais, inclusive. Parte das tensões do filme se cria por meio da comicidade e isso tem relação com sua filmografia, né? Está em Filme de Sábado (2009), em No Coração do Mundo. Gostaria de te ouvir sobre isso e quais são suas aproximações com essa parte da história do cinema brasileiro.

Gabriel Martins: Acredito que essa seja uma forma do filme desconfiar e rir de si mesmo, sabe? A comédia tem um pouco de anarquia e um pacto com o espectador que acho muito importante. Ela é bem convidativa, porque quando você ri em qualquer situação, você desarma um pouco a própria postura. Sinto falta disso no cinema brasileiro contemporâneo. O cinema feito por minha geração, no geral, foi bem sério. Quando o cinema é muito sério, parece haver dois motivos: ou as pessoas que fazem não tem senso de humor, e várias delas efetivamente acho que não são engraçadas, ou são chatas. Muitas pessoas que fazem filmes se levam a sério demais, se sentem muito importantes e não sabem rir um pouco de si mesmo. E tudo bem, né? A pessoa não precisa engraçada para ser um bom cineasta. Mas, particularmente, o humor dialoga com minha personalidade. Gosto muito de comédia e do lugar da desconstrução. Sinto que esse gênero tem uma espécie de convite a entender uma situação de outras formas. Tércia, por exemplo, evoca risos que são desconfortáveis para algumas pessoas. Tem pessoas que riem, mas também há aquelas que ficam ofendidas com as risadas, sobretudo pessoas pretas. 

Todas essas reações são válidas, porque a história é uma tragicomédia brasileira. Sou muito inspirado pela Boca do Lixo e o Cinema Marginal. São cinemas de humor muito anárquico. Eles me mostraram mais sobre o Brasil do que várias outras coisas. O Brasil é uma comédia constante, mesmo quando trágica. Dentro da nossa tragédia, há algo cômico logo em seguida. Esse não é meu estado de espírito, mas flerto com ele. Aquele plano das meninas dando às mãos e a reação dos pais é algo muito clássico, e tenso, mas tornou-se algo imediatamente engraçado. Gosto de colocar os personagens para dançar e jogarmos junto com eles. De fazer os espectadores passarem pela montanha russa de emoções que os conectam com os personagens. Sempre quis que o filme pudesse se conectar com as pessoas, que elas se sentissem quase parte daquela família. O humor é uma das formas de estabelecer essa relação.

Lorenna Rocha: Marte Um tem esse título e estamos assistindo a história de uma criança que sonha em explorar o Universo. O nome vem de uma missão espacial que é colonizadora, né? Estamos no Brasil, somos pretos e colonizados, somos pretos fazendo cinema, e o nome do teu filme tem ligação direta com o projeto que tem como premissa invadir e tomar de assalto um lugar. Queria te ouvir sobre esse nó do filme, no sentido de que esse assunto, historicamente, é algo bem caro e sensível para pessoas racializadas. 

Gabriel Martins: Essa escolha tem um pouco haver com o desejo de jogar uma bomba na cabeça do espectador. Para que ele pense naquele moleque preto que, no Brasil, está na base da cadeia alimentar. Ele é uma vítima da maior parte das circunstâncias. Desacreditado e vulnerável, não se pensa em um futuro para ele. Deivinho pode morrer na próxima esquina, o Estado é contra ele. E ele está pensando em ser um explorador. Não no sentido de roubar coisas, mas no sentido de partir ao desconhecido. Mesmo que tenha algo sobre posição de poder, tem muito mais dele estar descobrindo algo novo. Não dá para entendermos esse projeto de marketing, de colonização, como igual a nossa. Estamos falando de um lugar que, em tese, não é habitável, não se sabe o que vai encontrar lá. Essa imagem de Marte tem mais a ver com o desconhecido.

Trazer isso para o título tem uma provocação da ideia do Deivinho como representação de futuro, de uma juventude ou um olhar negro livre. Com sua pouca idade, o mundo ainda não teve tempo de invadir ou destruir o sonho dele. Assim como eu era aos doze anos. Talvez o mundo ainda não tenha dito que ele não pode ser um cientista porque ele é um garoto preto. Talvez ele ainda não ouviu isso e, se já ouviu, nem deve ter feito muito sentido. Deivinho nem sabe o que é o sonho dele, mas gosto de pensar que ele está indo em rumo ao desconhecido. Para mim, essa era a ideia do meu primeiro filme solo, de um filme que faço com dinheiro para preto, sobre uma família negra: ainda não sabemos quais são os nossos sonhos.

Marte Um está estampado no título porque é a primeira expedição, e esse é o primeiro longa que dirijo sozinho, e porque ele é baseado nessa missão espacial. Ainda, tem um pouco do desejo de tensionar esse lugar histórico em que somos vítimas de um processo o qual fomos levados ao desconhecido de maneira forçada. Mas, agora, podemos dizer que queremos ir para outros lugares que não conhecemos, por vontade própria e desejo de exploração. É uma forma de pensar o mundo de uma forma que ainda nem conseguimos fazer. No meu olhar, pensar o futuro da negritude passa por esse rumo ao desconhecido. 

Me parecia também um voto de fé para o futuro do cinema preto, à essa família e à negritude através do Deivinho. Não devemos pensar que o que encaramos é o desejo ou aquilo que deu certo. É preciso entender que ainda vamos descobrir algo que nem sabemos o que é. Pode ser uma utopia ou não, mas sequer sabemos como chegar lá. Não sabemos se o Deivinho vai chegar em Marte, mas isso pouco importa. O filme não é sobre o desejo de concretização da missão Marte Um, mas o movimento de chegar até lá. Parece até algo abstrato, mas são pistas de onde está a bomba. A cena do vulcão sempre esteve lá e você foi a primeira pessoa que comentou sobre ela. Ninguém havia falado abertamente para mim, mas sempre foi isso. Você conseguiu ler. Há um monte de segredos no filme. Às vezes, um momento de passagem tem um segredo. Marte Um tem a ver com isso.

Lorenna Rocha: Você traz a palavra “exploração” no sentido de desbravar. No filme, isso tem a ver com o sonho, né? Nós pensamos logo no ato de dormir ou no futuro, mas acho que o filme tem essa coisa do sonho como um desejo de viver o presente. Isso está no cotidiano daquela família ou quando não se idealiza aquelas relações interpessoais. Não se demanda que o pai seja melhor, nem que a filha seja mais compreensiva com o pai, ou que o marido não seja tão duro, sabe? A perspectiva de sonho parece estar nessa coisa de desejar vinte e quatro horas ao outro. O movimento e o futuro estão no presente.

Gabriel Martins: Sua leitura completa o pensamento do filme, no sentido de que ele defende a importância das coisas simples. Não estou ignorando que é incrível o Deivinho ir para Marte, se tornar um astro. Mas, quando ele fala que aquilo custa U$ 1.000.000,00, parece algo tão abstrato! Ainda na infância, ele sabe que não tem dinheiro, entende que para ele aquilo é quase impossível. Só que isso não importa. Acho que, em sua simplicidade, o personagem traz também um desejo de poder sonhar. O cotidiano resolvendo esse lugar do sonho tem a ver, inclusive, com o entendimento de que comportamentos ideais não são necessariamente a solução para as coisas.

É curioso como Marte Um tem muita fé e ao mesmo tempo é um pouco niilista. Ele fala sobre sonho, mas entende a efemeridade do tempo. Em vinte e quatro horas, tudo muda. É um filme em que a Tércia quase morreu e isso mudaria tudo para a família. Ela falar que está viva não é só sobre ter escapado de um acidente, mas é este signo do presente. Quase que cortei do filme, porque parece um pouco aquela tatuagem brega do Carpe Diem. No entanto, a frase dela faz todo sentido diante de várias questões do mundo: Bolsonaro, aquecimento global, as coisas que nos fazem desistir. No fim das contas, é sobre estar aqui. É muito engraçado como as pessoas associam a realização do filme ao Oscar. Há uma ideia de materialização de algo, mas para mim nunca foi isso. Nunca foi exatamente sobre a conquista de Marte. Nunca foi necessariamente sobre representatividade. É sobre existir. 

Lorenna Rocha: Você falou sobre representatividade e acho que Marte Um tem vários símbolos que convocam essa leitura. Quando a irmã mais velha aparece pela primeira vez, está vestida com uma camisa com a palavra “matriarcado”. Ainda, há a questão da sexualidade dela. O filme traz pessoas conhecidas ao público, do diretor André Novais de Oliveira ao Toquinho, que é um digital influencer. Acredito que essa representatividade é trabalhada de uma forma particular, bem diferente, por exemplo, de um título como Medida Provisória (Lázaro Ramos, 2021). De todo modo, você não acha que o filme acaba evocando um pouco esse lugar?

Gabriel Martins: Acho que evoca. Na verdade, o filme reconhece que a normatividade é a diversidade. Nas ruas, há pessoas muito mais diferentes do que o cinema nos mostra. Então, o cinema que está errado. Essa leitura é feita e sou ciente disso, não estou criando de forma ingênua, quero provocar uma discussão. Quando Toquinho aparece, a questão não é sobre as características físicas dele, então acredito que isso buga um pouco a cabeça do espectador. Porque quando tem um preto, ele acha que tem que ter arma, ou tem que haver uma tragédia, ou um branco sendo racista, ou um preto militante, ou um afrobunker

O filme não é uma coisa nem outra. O mundo tem muito mais famílias como Marte Um, do que personagens como os de Medida Provisória. Há uma expectativa em relação ao que estou fazendo e jogo com isso. Não trago o Toquinho porque vai chocar, mas porque é absurdo que ele não tenha oportunidade de atuar num filme. É a mesma lógica de quando chamamos a MC Carol para fazer No Coração do Mundo. Sei que é uma atriz fantástica e ela não tinha feito nenhum filme. Em Marte Um, Toquinho aparece numa banheira com collant de pantera, mas essa é a personalidade dele, que ele vende ao mundo e também joga com ela. Tem humor nisso, mas é para provocar um questionamento sobre essa ideia de normatividade. Do que é representatividade nesse sentido. Concordo contigo, estou no jogo. O filme tem suas leituras, mas há uma vontade de desafiar aquilo que estamos considerando como status quo.

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