Dez pontos sobre cinema mutirão, Rosza Filmes e a Mostra de Cinema de Tiradentes

por Gabriel Araújo | Fri Feb 17 2023 15:33:42 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

1. “Como criar polissemias em termos formais?” Essa foi a pergunta que talvez tenha norteado a experiência dos filmes mais interessantes exibidos na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, um rastro discursivo que vem sendo construído desde edições anteriores. Feita pela curadora de curtas Mariana Queen Nwabasili durante o debate com os demais curadores da edição, o questionamento traduz o desafio de confluir a temática “Cinema Mutirão” numa estética que dê conta de não apenas representar, como repercutir a coletividade. 

2, Talvez a noção de coletividade não precise estar em conflito com a ideia de autoria. Lembro de uma entrevista que fiz com a montadora Cristina Amaral, que também estava no júri oficial da Mostra, durante a segunda edição da LONA - mostra cinemas e territórios. Ela, que diz ter o maior respeito pela direção, comenta que são os autores que vão fazer um mergulho no mundo que está à sua volta – ela usa a figura do para-raio para materializar a comparação – e colocar “a alma na tela”. É preciso ter coragem, como ela diz, e responsabilidade para com as imagens e sons produzidos, já que os filmes, ainda na concepção dela, “são documentos visuais do nosso tempo e do nosso país” (citação retirada do debate Práticas Coletivas no Cinema Brasileiro Contemporâneo). Afinal, mesmo trazendo para a temática a ideia de Cinema Mutirão, Tiradentes escolheu uma dupla de autores, Glenda Nicácio e Ary Rosa, como os homenageados da Mostra. E isso não me parece ser uma incoerência, já que não é necessariamente relevante, para os filmes em si, entender onde o coletivo termina e a individualidade começa. Isso é papo para a terapia.

3. O cinema, por natureza, sempre foi coletivo. A ele, entretanto, resta a difícil e complexa missão de abraçar por inteiro essa multiplicidade, da produção à recepção, e dar conta das diferentes concepções sensoriais, estéticas, formais e narrativas que a noção radical da pluralidade produz. Não é tarefa simples. 

4. Durante a mesa com os homenageados da edição, Glenda Nicácio comentou que, por ser individualista em demasia, o cinema tem uma dificuldade inerente para entender como a ideia de cinema mutirão funciona. “Depois de tantos anos e filmes, descobri que não tem como ser meia diretora negra, entende?”, ela também disse à crítica e pesquisadora Lorenna Rocha na entrevista publicada no catálogo da Mostra. “Sempre vi o nosso trabalho como o dobro e não como metade”, comentou Ary Rosa nessa mesma entrevista. Vai ver, a ideia de coletividade e a ideia de autoria são apenas complementares. 

 

Bastidores da gravação de “Na Rédea Curta” (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2022)

 

5. Houve uma fricção interessante nessa mesma mesa com Glenda e Ary. Em dado momento, ela diz, citando também Ary, que “a gente faz cinema pra Cachoeira”. A frase reverbera o que os próprios filmes da dupla já mostram – que um cinema produzido num território específico, que responde aos anseios criativos daquele espaço e entende as suas limitações materiais e imateriais, certamente vai carregar em sua matéria as características daquele lugar. “É o território que nos possibilita ter um ponto de vista, ter a narrativa, que, por sua vez, possibilita nos aproximarmos do público que nos interessa”, disse Ary na entrevista já mencionada. Contudo, logo a seguir, a atriz Arlete Dias, também presente na mesa, rebate de forma despretensiosa, mas com um sorriso de canto de rosto: “a gente faz cinema para o mundo”. Aqui vale entender que Cachoeira é Bahia, Cachoeira é Recôncavo, assim como Cachoeira é Brasil, Cachoeira é mundo. A dinâmica constante entre local e universal nos filmes da dupla mostra o quanto suas narrativas encontram eco em diferentes espectatorialidades, na rica linguagem que estrutura o encontro entre o cinema popular e a singularidade das estéticas que se confluem no cinema brasileiro contemporâneo.

6. Cinema Mutirão, como ressaltou o coordenador curatorial Francis Vogner dos Reis, existe da forma como existe porque o momento não é ideal, e sim de escassez. Por isso, segue sendo necessário defender políticas públicas e financiamento adequado para que essa situação não seja a regra. Assumir a precariedade como estilo e estética, por outro lado, foi a estratégia adotada pela Rosza Filmes para continuar produzindo um longa por ano. “Por necessidade a gente faz mutirão, mas a gente também faz por gosto”, disse Ary. 

7. É sempre bom relembrar Paulo Sales Emílio Gomes no clássico ensaio “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento” (1973): “Em cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa, um estágio, mas um estado: os filmes dos países desenvolvidos nunca passaram por essa situação, enquanto os outros tendem a se instalar nela”. “Eu quero mostrar que eu não tenho dinheiro para fazer filme”, disse Ary no debate. 

8. “Eu nem sei se meu povo conhece a palavra mutirão”, afirmou Mirna Kambeba Omágua Yetê Anaquiri, artista visual, performer e arte educadora de Goiás, na já citada mesa Práticas Coletivas no Cinema Brasileiro Contemporâneo. A fala reflete uma ideia que está impregnada na própria linguagem de um povo. A partir do momento em que todo um modo de viver é coletivo, não existe a necessidade de empregar uma palavra para discernir uma situação tão banalizada. Isso diz muito do modo como os indígenas entendem a própria vida, claro, mas também nos ajuda a depreender sobre a forma como eles entendem o cinema. 

9. Por mais que a mesa em questão tenha reunido reflexões sobre o cinema negro e o cinema indígena, numa narratividade que fez confluir falas e pensamentos, creio que algumas diferenciações básicas precisam ser feitas. A primeira delas, talvez óbvia, se reflete no fato de que, mesmo produzido por minorias sociais, cinema negro e cinema indígena não são exclusivamente correspondentes. 134 anos de pós-abolição evidenciaram como persiste a gritante desigualdade entre pessoas negras e pessoas brancas no Brasil, mas também concretizaram uma invasão inadequada de discursos neoliberais e individualistas entre a comunidade negra – as expressões “favela venceu” e “pretos no topo” são o exemplo perfeito do que tento dizer. O cinema produzido por pessoas negras precisa se desvencilhar dessas armadilhas. Rejeitar o estrelato, rejeitar a síndrome do “negro único” ou do pioneiro, e investir numa coletividade que seja contraditória, ambivalente, diversa. Se é pra ser efetivamente contra-hegemônico, não nos interessa repetir as insuficiências da hegemonia. 

10. “Cinema arrastão” foi o termo usado por Saskia, codiretora de Caixa Preta (2022), para refletir um pouco sobre o que o filme produz. Um arrastão de arquivos, imagens, sons e glitches, (des)ordenados em meio ao excesso e ao acúmulo. Nem sempre coletividade tem a ver com materialidade. A intensa produção e compartilhamento de arquivos audiovisuais produzidos em rede representa material fértil para pensarmos sobre criação de narrativas e fluxos de discursos mediados por uma tela que, a princípio, não é a do cinema. Como ressaltou o jornalista e pesquisador GG Albuquerque, não se atentar para esse fenômeno é ser engolido por uma onda gigante que ainda vai crescer mais.

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