Uma ode à estranheza | Crítica de ‘Entre a Colônia e as Estrelas’ (2022), de Lorran Dias

por Gabriel Araújo | Sat Feb 11 2023 14:26:22 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

26ª Mostra de Cinema de Tiradentes

 

Cena de Entre a colônia e as estrelas

 

A câmera que inicia Entre a colônia e as estrelas (2022), média-metragem de Lorran Dias, promove uma espécie de passeio pelo território da Colônia Juliano Moreira. Foi nesse local que, a partir de 1920, construíram as edificações de um núcleo psiquiátrico. Inaugurado em 1924, o local foi inicialmente nomeado de Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá. Numa época em que a convulsoterapia, a lobotomia e os eletrochoques eram utilizados como técnicas para se lidar com questões de saúde mental no país, a Colônia replicava os horrores produzidos em diversos manicômios brasileiros à época.

No filme, é significativa a escolha de traduzir a violência presente na história desse espaço sob a ótica do terror. A trilha de Podeserdesligado, pontuada pelo suspense de um solitário toque de piano com chiados de um prato de bateria, é capaz de compor um clima que repercute o horror do passado da instituição e a estranheza de seu presente, fabulada pela narrativa de Dias. O média parte de um fato real – o fornecimento de água poluída a moradores do Rio de Janeiro, em janeiro de 2020 – e intensifica o relato do absurdo ao evidenciar, de um lado, as desigualdades sociais entrecruzadas ao descaso do poder público, e, de outro, a estranheza de uma narrativa que, por absurda, só pode ser representada por meio da surrealidade.

Tudo é um pouco estranho na obra, mesmo em meio à estética clássica que domina a primeira metade do filme. Uma de suas primeiras cenas, por exemplo, apresenta uma conversa entre Estelar (Timbuca Hai), principal protagonista da história, e Úrsula (Ana Flavia Cavalcanti). As duas são enfermeiras do hospital psiquiátrico que dá nome à Colônia e aparecem pela primeira vez lendo um livro em francês, numa prática do idioma. Seja a escolha por iniciar o primeiro diálogo do filme em outra língua, seja a peruca loira que Estelar, mulher negra retinta, usa na cabeça, seja mesmo o modo como a câmera desliza para o lado, nessa sequência, a fim de enquadrar um minúsculo protesto contra a privatização da saúde e os problemas no fornecimento de água potável; tudo se enumera nessa espécie de ode à estranheza.

 

Cena de Entre a colônia e as estrelas

 

No meio dessa crise de água, Estelar ainda recebe a visita de Kalil (Lorre Motta), seu irmão mais novo recém-aprovado para estudar música numa universidade pública. Nasce um conflito a partir dessa estadia. Talvez pela escolha de Kalil em cursar uma faculdade no campo das artes, talvez pela própria dificuldade de Estelar em lidar com a transexualidade do irmão, o afeto que une os dois apresenta-se abalado.

À narrativa acrescentam-se imagens de arquivo da Colônia Juliano Moreira, filmadas nas décadas de 1980 e 1990. Os vídeos em baixa definição, ainda em preto e branco, costuram as temporalidades que se atravessam durante a obra, criando uma espécie de rastro que dá contexto e historicidade ao território. O uso da música I Say a Little Prayer como trilha, eternizada na voz de Aretha Franklin, mas aqui cantada em a cappella com uma pronúncia propositalmente falha, colabora para a construção da estranheza citada. A canção traz um quê de onírico às imagens dos ônibus que trafegaram naquele espaço até então vazio, dos morros que ainda divisam o horizonte da região e até das ruínas de um aqueduto, prenúncio da crise hídrica que se instalará na segunda metade do filme. Afinal, quando a água potável começa a faltar, resta aos moradores tomar a água suja e espessa que lhes é fornecida. 

Tal estranheza aos poucos cresce e se intensifica. O ponto de virada do filme – que é inclusive demarcado por uma virada estética, com uma abrupta mudança no tratamento de cor – ocorre justamente quando Úrsula toma essa água suja e desaparece numa poça de um líquido viscoso e prateado. É a partir daí que o filme de Lorran Dias abraça o improvável e se entrega ao surrealismo que já estava presente desde o início, despreocupado em fechar todos os plots que abre, mas comprometido em construir uma experiência capaz de esgarçar as pré-concepções do que pode ou do que deve ser um cinema que conflui entre o moderno e a experimentação.

O filme, por exemplo, cria um espaço para além do tempo e da geografia para onde vai convergir a busca de Estelar pelo irmão, também desaparecido após beber da água contaminada. Chega a ser possível enquadrar tal local na ideia de pretEspaço, como formulado pela crítica e curadora Kênia Freitas. Algo, como ela escreve, entre um espaço “sideral & literal” e o “(não) Espaço que está (sempre-já) em-todo-lugar”. Nesse momento, mais do que construir narrativas para serem interpretadas, o média parece se preocupar em criar imagens e sons que possam desestabilizar as formalidades e as coerências de tal espaço. Seja a da mulher trans que mata um soldado de outro tempo para proteger a protagonista, seja a da dançarina do ventre que pausa o desenrolar da ficção e performa num refúgio encravado no meio da floresta.

 

Cena de Entre a colônia e as estrelas

 

A resposta para todas essas situações, se é que há alguma, pode estar escondida no discurso do cavalo prateado que carrega Kalil na caçamba: “A vida não é apenas o que nós queremos ou compreendemos. O nosso passado deve ser a nossa referência, mas não a nossa morada. […] No coração do mundo residem todas as diferenças, todos os tempos, abismos, mistérios entre nós.”

Se a estratégia do desaparecimento de corpos não desejados pode parecer muito óbvia à princípio, vide a correlação imediata que pode ser feita com o genocídio negro e a violência contra corpos e identidades dissidentes, Dias responde com um excesso de fabulações não necessariamente explicáveis. Pois é também o genocídio, sim, assim como é algo a mais. Se escolhemos chamar esse algo de resistência ou loucura, não importa muito. Às perguntas que podem surgir durante o filme, somam-se mais perguntas que não esgotam o seu final. E o impossível construído pela estranheza acaba ganhando um endereço indefinido; local, certamente, mas ainda assim intergalático, localizando-se na confluência descrita pelo título da obra.

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