Dançar sobre as pedras: uma conversa com Bernardo Oliveira e Saskia em torno de 'Caixa Preta' (2022)

por Gabriel Araújo e Lorenna Rocha | Wed Jan 25 2023 20:07:06 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Tal qual Caixa Preta (Bernardo Oliveira e Saskia, 2022), média-metragem que integrou a programação temática da 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, apostamos no fragmento e na deriva para compor uma conversa que amplie perspectivas e experiências em torno do filme. Na transcrição que se segue, Bernardo Oliveira, Saskia, Gabriel Araújo e Lorenna Rocha compartilham impressões sobre a obra e navegam entre os samples, conceitos e espasmos das infinitas possibilidades que ela suscita.

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Gabriel Araújo: Queria trazer para a conversa a ideia da própria materialidade do filme. Eu lembro que, no ForumDoc (Festival do Filme Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte - MG), Saskia falou que tem certa dificuldade em chamar o Caixa Preta de filme. Enquanto o Bernardo, num áudio que a gente trocou uma vez, comentou que também é importante defender essa ideia, de que existe um filme ali, feito para ser exibido em tela grande.. 

Bernardo Oliveira: É isso, é um filme. Eu não sei onde é que o filme entra de modo a mexer e revirar a percepção que as pessoas têm do que é um filme, mas ele é um filme antes de mais nada. 

Saskia: Acho que ele está num lugar de reinventar palavras, de reinventar a palavra ‘filme’ e a experiência audiovisual. Talvez ele perpassa a ideia fechada da palavra filme. Que, como o Bernardo diz, não é tão fechada assim. Talvez seja a minha percepção também, que vem de um trabalho fora do cinema. Talvez a minha ideia de filme esteja sendo mudada e, por consequência, eu também esteja mudando a ideia do que é o filme.

Bernardo: Isso com certeza. E eu acho que a gente fez isso de maneira bastante consciente. É um filme, não é uma instalação, não é uma performance, não vai virar uma ópera e nem um galpão em Inhotim… É um filme, pra ser visto na sala de cinema. De preferência, numa sala bem escura.

Gabriel: Com um som bem no talo.

Bernardo: Com o som no talo!

Lorenna Rocha: Eu acho que ontem [a entrevista foi gravada no domingo, 22 de janeiro, um dia após a exibição de Caixa Preta na Mostra de Cinema de Tiradentes] isso ficou muito claro para mim. Eu fiquei pensando muito no desenho de uma caixa preta dentro do Cine Tenda. Essa luz que vai ocupando todo aquele espaço. Eu havia visto o filme em casa, onde existe aquela distância de uma tela que é muito próxima e muito pequena. E quando eu vi o filme em tela grande, falei: “caralho, que onda!” Sabe, bateu muita coisa. E eu entendi o filme de um jeito, bateu em mim de uma forma na primeira vez, e agora já bateu de uma outra. Mas te ouvindo agora, Saskia, me questiono: por que a recusa da palavra filme? Você falou um pouco sobre essa ideia de um cinema num lugar muito limitador, talvez muito alinhado a uma ideia de cinema narrativo, por exemplo…

Saskia: Eu acho que limitadora é a linguagem. Quando a gente nasce, por exemplo, e a gente tem fome, alguém diz pra gente que essa sensação que estamos tendo no corpo é “fome”. Fo-me. Então você limita a sua sensação a uma palavra, a uma linguagem E uma coisa que a gente estava conversando antes é sobre criar um outro alfabeto, um neologismo de linguagem. Eu acho que talvez seja em relação à palavra filme. Todas as experiências que eu posso trazer com essa caixa, com esse trilho dentro de uma caixa, como a gente falou mais cedo, talvez perpassam a ideia de que não só seja só um filme. Talvez tenha uma palavra a mais para isso – mas em relação à nomenclatura, não à ideologia do que é cinema, porque o que é cinema a gente inventa. É literalmente inventar o que são as coisas.

Bernardo Oliveira e Saskia apresentam Caixa Preta no Cine Tenda. Foto: Jackson Romanelli/Universo Produção

 

Bernardo: A ideia de cinema é uma ideia super esponjosa, ela vai absorvendo coisas. Eu concordo com a Saskia que palavras acabam direcionando muito, mas, se você observar, a própria palavra “filme” não convém para o tipo de experiência que a gente tem hoje na produção audiovisual. Não tem mais filme. Mas a gente continua chamando de filme porque a expressão tem volatilidade. Aí eu concordo com a Saskia quando ela diz que a questão é como você vai inventar novos idiomas. Mas o cinema não é só uma expressão idiomática.

Gabriel: Como assim?

Bernardo: Por exemplo, eu me considero um cinéfilo no sentido doente da palavra, de ver filme porque tem que ver filme. Aí eu acabo indo fundo na Netflix. E os filmes da Netflix são preocupantes, porque são muitos e todos iguais. 

Saskia: Fordismo!

Bernardo: É uma fórmula, como se você estivesse num curso de inglês. Onde você vai ver um filme espanhol, um filme coreano, um filme eventualmente israelense, e eles são todos iguais! Eu acho que se a gente for citar referências em termos de singularidade de estilo, especificamente com Caixa Preta, é óbvio que estamos ligados de uma certa maneira ao cinema experimental, sobretudo com o cinema de arquivo e, mais ainda, o cinema de arquivo em termos materiais. Tipo Aldo Tambellini, Santiago Álvarez, onde você tem um cinema que a ação do cineasta incide diretamente não sobre a linguagem, mas sobre a matéria do filme. Ele rabisca. Então eu sinto que também, ao mesmo tempo, há um certo deslocamento da perspectiva de dizer o que é cinema em relação à própria ideia que se consagra no século 21 de cinema. O cinema é o que se passa na Netflix, né? Por que estamos fazendo uma pré-estreia? Porque não passou no shopping ainda! Então tem espaços consagrados, tem modos…

Saskia: Se o Caixa Preta começar a passar em shoppings, a gente com certeza tomou os meios de produção e acabou com o capital, tá ligado? Isso é perigoso, cuidado com isso!

Bernardo: Eu acho que tem realmente uma forma… Cara, vocês já viram The White Album (2018), do Arthur Jafa? 

Gabriel e Lorenna: Não…

Bernardo: Pois é, é Caixa Preta. (risos)

Saskia: Você tem uma relação diferente com a referência. Eu sinto isso vindo de um lugar que não é a da cinéfila doente, de simplesmente assistir um filme pelo tesão do que ele pode ser. De pegar as fitas da locadora e não devolver por um ano, e assistir todo dia em casa… Mas sobre a relação da referência que você falou, sobre a esponjosidade do cinema: eu tenho um jeito diferente de absorver e aplicar referências. Normalmente parafraseio ou influencio essa coisa de você ter ali um banco de dados do que a humanidade já fez para, a partir disso, criar uma narrativa pautada numa linha de pensamento, num estilo. Eu tento hibridizar ao máximo essa questão da estética. Eu tento pegar tudo e misturar num bolo só. Não é ovo, não é fermento, não são pós e farinha. É uma sequência de misturas, tecnologias e ferramentas que fazem o milagre do bolo. Daí vocês vão dizer que o bolo é doce. Vai lá nego e faz um bolo salgado. Daí você chama de quê? Sabe, eu acho que essa ideia de referência tá mais longe no meu processo. Também entendendo que eu estou entrando no cinema agora. É a primeira vez que eu posso sair rodando o Brasil. E tem essa coisa de debater o filme depois… Eu normalmente não argumento o que eu faço. Eu faço as coisas muito sem pensar. Eu escuto vozes na cabeça e vou fazendo. Quando vê, eu estou em transe ali dentro, não necessariamente com um objetivo. O transe não tem um objetivo. O ápice se dá de uma forma arbitrária. Eu acho que esse processo é menos linear do que eu vejo que a galera faz. Quando eu conto sobre o filme, eu estou entendendo ele novamente. Por isso que eu peço uma sinopse póstuma, porque é exatamente póstuma que ela acontece. Eu já senti que o Caixa Preta é um trilho dentro de uma caixa. Eu tô muito andando por esse caminho, entendendo que o meu processo é um pouco trilhado, desbravado, porque não é uma linha reta.

Gabriel: E eu acho massa essa ideia do transe que você traz. Eu estava conversando ontem sobre como o filme permite múltiplas entradas e múltiplas saídas, não necessariamente lineares e não necessariamente narrativas, justamente conduzindo uma ideia de transe pelas imagens, pelo som – pelo som alto, principalmente –, te conduzindo numa espécie de experiência.

Bernardo: Muito maneiro você ressaltar o som alto, porque uma das características do que a gente costuma chamar de cinema é a sua qualidade de indústria. Ele é uma indústria justamente porque custa muito caro fazer a encenação, o cenário, pagar todos os profissionais, iluminar, fotografar… A tendência de que isso vá, vamos dizer assim, na era do fordismo, ser planejado como uma linha de montagem, obviamente tem a ver com um período da história, um certo lugar, uma geografia e uma geopolítica. Agora, em nenhum momento o cinema se prende ou pelo menos se prendeu necessariamente a isso. O que eu acho é que hoje tem uma alta formalização. Água demais mata planta. Eu vejo o cinema da Netflix com muita preocupação. Então o Caixa Preta é um filme que nasce também de algo que… Quando eu falo de estilo, eu falo de singularidade. A Saskia fez o filme. Ela viu o filme, montou, enfim. Daí surgiu isso que vocês viram. Tem várias ideias conceituais, tem ideias do [Negro] Leo, tem a coisa da caixa preta, tem a coisa do Atlas Mnemosyne que foi muito característico da Ciranda do Gatilho [https://www.cirandadogatilho.com], de fazer um Atlas Afro-Mnemosyne…

Captura de tela da página inicial do site Ciranda do Gatilho

 

Saskia: A ideia de recuperar a ideia de site, né, de navegação. Acho que tem muito a ver com a ideia de navegação. Pós redes sociais, o que a gente trilha na internet acaba sendo como se fosse uma charrete. Às vezes você nem decide, o algoritmo decide por você. Spotify também faz isso pra caralho, eu tenho os meus problemas com Spotify… E eu acho que esse descarrilhamento que a gente bota no site, nesses três atos que estão ali, tem um um nível de aleatoriedade, um jeito da pessoa poder se perder. É um mapa aberto. Não é um jogo linear. Tem isso nos jogos. Tem jogos lineares, que você não pode sair da estradinha nem da história, da narrativa que o personagem tem que fazer no jogo, e tem o RPG, que é um mapa aberto, em que você decide para onde você vai. Eu acho que esse trilho que a gente bolou na Ciranda do Gatilho vai um pouco assim. Inclusive o movimento 2 é um jogo de búzios, então cada pessoa que entrar lá vai fazer um jogo diferente, com uma sequência diferente. Ela pode ir para lugares diferentes, então a cronologia da narrativa que ela vai montar na cabeça dela é outra. Então eu acho que o espectador é também um protagonista. A ciranda 3, esse terceiro ato [o filme], é um pouco assim, porque as pessoas viram protagonistas. As experiências são extremamente particulares e singulares. Não teve uma pessoa que falou a mesma coisa da experiência. Só quem não entendeu, né, que vai se repetindo…

Bernardo: Eu acho que a pessoa que não gosta, não gosta necessariamente porque não entendeu. Se está facultado ao espectador a interpretação do que é aquilo, eu acho que a gente já começa errado. Não é pra interpretar. É por isso que é tão difícil falar sobre, fica meio estranho. Parece que se está querendo explicar uma coisa que não é pra explicar, é pra sentir mesmo. É por isso que o som tava alto, por isso que as imagens são ritmadas… Pô, aquela parte do paintbrush é uma das coisas que eu mais gosto. Eu amo. “Quem tá aí, quem tá aí?” É uma coisa meio rap.

Saskia: Tá uma tensão total, aí do nada abre o paint! Nessa sessão que teve agora, a galera riu. Achei muito bom ouvir umas risadas, por que às vezes a galera não se permite bater palmas, gritar, rir e ter esses espasmos.

Qm ta ae?? Ngm. Cena de Caixa Preta

 

Gabriel: E é essa a vontade que você logo mobiliza na fala de abertura [de apresentação do filme em Tiradentes]. Faz o que você sente vontade de fazer.

Bernardo: Particularmente, eu acho… Saskia acha que eu sou obtuso, mas existe cinema. Existe a história do cinema. Histórias do cinema, como diz o Godard. Histoire(s) du cinéma. São várias histórias possíveis. Há uma história quântica do cinema. Agora, existem limites que estão relacionados tanto à produção, exibição e recepção. Na produção tem coisa que você não faz. No ambiente da recepção tem coisa que você não faz. Tem limites e parâmetros que são medidos e controlados.

Saskia: Eu tenho dificuldade com limites.

Bernardo: Você pode ver, é um cosmos de referências e ideias, mas que funcionam no filme de alguma maneira. A gente já citou Atlas Mnemosyne, do Aby Warburg, a gente já citou Arthur Jafa, Aldo Tambellini, Santiago Álvarez, cinema de arquivo…

Saskia: Jordan Peele. Aquela coisa do medo que é gracioso.

Bernardo: E foi rolando. Ela montou a maioria, tinha as ideias da caixa preta, tinha texto do Leo, tinha muito material das primeiras cirandas… O filme é cheio de material, sobretudo do disco. 

Saskia: Sobretudo do disco. Na verdade, o filme começou por causa do disco.

Bernardo: E o disco está lá escondido num site. E a curiosidade das pessoas é tão pouca, é tão fraca, que ninguém chegou nem no nível dois ali do negócio. Porque a ideia é: toda vez que você clica numa pedra daquelas, o jogo ou reabre ou você vai para uma faixa. Terminou a faixa, você abre o jogo de novo. Pode ir para uma faixa ou pode reabrir. Então a pessoa, para ouvir o disco inteiro, tem que dedicar a isso um tempo que é incompatível com o tempo que ela posta fotos e participa ativamente da rede social. Eu acho que foi muito genial o que a Saskia falou agora, porque a navegação online, que era um valor na primeira década do século 21, hoje está um tanto quanto perdida. Era um barato!

Saskia: Era uma delícia. Poder navegar e parar em lugares inóspitos da internet.

Bernardo: Isso foi acabando, porque você sabe exatamente para onde vai. Você vai pra aquela chatura daquele Instagram. Já vai falar pra lá, é um casamento. Antigamente era uma aventura, agora a gente casou com as redes sociais, então é uma vida de casamento. 

Saskia: Ainda mais no meio da arte.Se tu tenta divorciar ali, tu logo logo vai à falência.

Lorenna: Eu acho que o filme tem muito isso de navegação mesmo. Esse entrar e sair que o Gabriel falou talvez venha disso. 

Saskia: É um vuco vuco.

Bernardo: É um filme que naturaliza o vuco vuco. 

Saskia: É um vuco vuco dialético.

Lorenna: Eu queria puxar essa coisa da referência. Tudo que vocês falaram tanto dessa questão da não nomenclatura, ou de reinvidicar… Não é nem reivindicar o lugar [de filme]. Mas quando eu ouço o Bernardo, eu penso que esse tipo de filme, como outros filmes da contemporaneidade, empurra o nome cinema e o desloca para outro lugar. Acaba movimentando os significados dessa palavra. Eu acho que o pensamento dos dois se encontra nisso, que é a transformação. Mas eu queria aproveitar essa questão da referência porque eu entrei numa lombra ontem. Eu achei o filme muito parecido e radicalmente diferente de Ôri (Raquel Gerber, 1989) e queria ouvir vocês em relação a isso. O meu pensamento foi o seguinte. Ôri, ainda que fragmentado, nessa montagem não linear, mesmo com o fio de história que se conduz ali, apresenta o esforço da Raquel [Gerber] junto com o pensamento da Beatriz [Nascimento] numa tentativa de mapear e localizar um pensamento social daquele momento, daqueles tantos anos que ela passa filmando. E quando eu vi o filme ontem, a primeira coisa que me chamou a atenção foi uma aposta no colapso. Vocês mapeiam algum tipo de momento social no filme, mas dentro do colapso, do curto-circuito. Acho que a proximidade com Ôri é o lugar da deriva, do movimento e da tentativa de encontrar algum lugar. Não de encontrar um lugar, necessariamente, mas de sugerir uma navegação, encorajar uma navegação com o filme. E, simultaneamente, colapsando isso o tempo inteiro, porque a gente não sabe para onde a gente vai. Colapsando uma ideia inclusive de pensamento em relação à negritude, em relação à blackness, se a gente puder usar esse termo mais amplo. Então eu queria ouvir vocês sobre isso. Sobre essa ideia de colapso, de deriva, e de como vocês enxergam, em algum sentido, um pensamento ali em relação à racialidade que está no filme. 

Bernardo: Vou responder com uma pergunta. O que você acha da epígrafe do início? Acho que ela explica muita coisa no filme. Ou melhor, explica não. Pode ser uma chave de entrada para muita coisa que acontece no filme. Quer dizer, a gente nasce no Cosmos. Poeira de estrela. Eu sou muito fascinado com essa ideia. Quer dizer, provavelmente esse universo observado tem 13 bilhões de anos, a nossa galáxia tem 400 milhões, o ser humano vive há bem menos tempo… Eu queria que o filme, de alguma maneira, trouxesse esse longo tempo, longuíssimo. E aquela epígrafe… Ninguém nunca perguntou, cara. É um trecho de “Rosa de Areia” (1989), da Margarida Cordeiro e do António Reis. A mulher fala isso. “Mil milhões, mil milhões, mil milhões”…  [o trecho é adaptado do livro "Cosmos" (1980), de Carl Sagan]

Epígrafe que abre Caixa Preta

 

Gabriel: “Eu sou o terceiro milênio”. Outra coisa que também aponta para essa imensidão.

Bernardo: “Eu sou o terceiro milênio” é um papo do Leo, né. Que eu me apropriei.

Saskia: Eu acho que a probabilidade que fala bastante nesse texto é do cosmos. A probabilidade da gente existir de fato. Eu acho que tem a ver com colapso. Eu acho que a existência é, em si, um colapso. Um colapso de milhões e milhões e milhões e milhões de probabilidades. Eu acho que a gente tá a deriva nesse colapso, o controle não é e nunca foi nosso.

Bernardo: O racismo um dia vai acabar, né, daqui a milhões de anos.

Saskia e Lorenna: Mil milhões, mil milhões, mil milhões…

Saskia: Então tem esse aspecto cósmico, depois o Leo começa a ler um trecho… 

Lorenna: Tem um trecho também de “Um Defeito de Cor” [romance de Ana Maria Gonçalves], da Kehinde?

Bernardo: Não, eu faço uma homenagem à Kehinde.

Lorenna: Pensei que o momento que falava sobre os escravizados era do texto da Ana Maria Gonçalves. 

Bernardo: Posso explicar. Era bom que não parasse na explicação. Aquele é um relato da Mãe Deni, que é uma mãe da Casa das Minas. O Leo, que é maranhense, foi convidado pra fazer um trabalho sobre a vida do Hubert Fichte, um antropólogo alemão que viveu muito tempo no Brasil, sobretudo no Maranhão. Então o Leo foi chamado para o Maranhão, gravou o boi lá, fez várias anotações e teve acesso a esses textos, esse texto maravilhoso que ele leu no final. Ele também leu no lançamento do álbum “Desejo de Lacrar”, em 2020. Se eu não me engano, em maio de 2020.

Saskia: Eu me lembro que eu achei esses áudios naquelas pastas intermináveis. O quanto de HD tem na Ciranda do Gatilho é uma coisa incrível. Então eu achei aquele texto e pensei: “caralho!” Contando uma história, o som da página virando, e a gente com essa ideia da tela preta. Daí eu só botei assim no improviso. E ele fala sobre a descoberta da doença, da doença como sendo uma coisa pós-colonial, que não era nem vista como doença antes. Entrou muito bem pra abrir a entrada da magnânima, da maga, pastora Ana Lúcia. Existe uma backstory pra cada fragmento ali. Cada um veio de um lugar. Sobre Bernardo Oliveira e Negro Leo, até hoje me pergunto: o que que Deus estava pensando quando resolver unir a pólvora ao hidrogênio.

Gabriel: O gatilho.

Saskia: Gatilho total. Eu brinco com esses fragmentos sem ter necessariamente esse starting point. Ter esse backstage story, como vocês gostam de dizer.

Bernardo: O lance dessa quantidade de dados tem tudo a ver com a Ciranda. A Ciranda foi esse espaço de um acúmulo. Teve um momento que realmente o lance era quantitativo, a gente precisava de quantidade.

Saskia: Por que, na verdade, os primeiros vídeos vieram daquele buraco. Que a gente sentia que estava faltando coisa. Tinha um monte de texto, de link, mas tava faltando imagem. Vamos abrir um buraco negro. E eu comecei a fazer vídeo com os áudios que a gente tinha ali na conversa, comecei a misturar tudo, meio que irresponsavelmente.

Bernardo: O paintbrush! O paintbrush tá na Ciranda 1. 

Saskia: O paint veio desse texto, o texto que o Leo fala. Que tem esse diálogo que ele gosta. “Quem tá aí?” Como a humanidade perguntou: “quem tá aí?” E a terra respondeu: “ninguém”.

Gabriel: E eu acho até massa ter colocado esse filme na Mostra Temática, citando o Cinema Mutirão, porque eu acho que o filme radicaliza essa própria ideia de mutirão. Para além das pessoas, para além das autorias com os arquivos dos filmes…

Bernardo: É povoado o filme, cara.

Saskia: Se fosse pra botar crédito… Para mim, os créditos do filme acontecem no texto do Terceiro Milênio, que praticamente quase tudo é citado…

Bernardo: Mais ou menos… Você sabe por quê? As pessoas acham que, naquele momento, eu tô homenageando aquelas pessoas. Não é verdade. Aquilo ali é o Terceiro Milênio. Eu só tô falando alguns nomes, poderia falar outros.

Saskia: Mas tu tá creditando. Não é uma homenagem, mas tem um crédito ali.

Bernardo: Não, eu tô falando apenas nomes. Inclusive alguns inventados, não existem. Tem pessoas ali que eu não tenho nem tanta admiração. 

Lorenna: Mas uma coisa que eu fiquei pensando – porque esse momento também mudou na minha experiência ontem – é que, em casa, eu achava que o filme tem um lugar de quebra de subjetividade. De como a gente pensa nesse lugar de humano, citando Denise Ferreira da Silva.

Bernardo: Coletivo, impessoal, mas que, de alguma forma, se reconstitui a partir da noção de valor. É cinema ou não é? Tá todo mundo o tempo todo perguntando. Qual o valor disso aí? É a pergunta, né? E, assim, a realidade é que é um lance pra você sair dançando, cara. É um filme para dançar. Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1995) é um filme pra dançar. 

Lorenna: E aí quando tu falava “eu sou, eu sou”, eu ficava pensando. Mas por que tem um processo de autoafirmação ou de autodeterminação do filme? Isso quando eu assisti em casa. E ontem eu olhei isso de uma forma muito mais fragmentada. 

Gabriel: Mais expansiva, eu diria.

Lorenna: E aí a gente tava conversando ontem sobre o termo “expansão infinita” [do texto “Cinema Negro Brasileiro: uma potência de expansão infinita”, de Kênia Freitas]. Acho que, talvez, ali naquele momento da tela preta com o nome das pessoas, inventadas ou não, personagens, enfim, meio que… Esse coletivo forma uma outra coisa que talvez não tenha nome. No primeiro momento, eu pensava que era uma autoafirmação do eu.

Bernardo: Não pode ser. 

Lorenna: Sim, quando, na verdade, é impossível! Pois você já se conecta, por exemplo, com aquela imagem das formigas…

Gabriel: Do carnaval…

Lorenna: E das pessoas também, porque tem umas imagens das pessoas em roda, e a própria ideia de gira… Tudo é coletivo, é impossível ser esse lugar do “eu”, autocentrado.

Cena de Caixa Preta

 

Saskia: O “eu” depende de quem lê. Se você ler esse mesmo texto, vai ser você.

Lorenna: Sim, mas também fico pensando num sentido de implosão. Eu achei muito foda porque a experiência de ver na tela grande tornou isso possível. Só a experiência de ver grande e escutar alto que tornou isso possível para mim, particularmente. Como o filme, por ser coletivo, por criar uma ruptura com a subjetividade, é também super anticapitalista. Do início ao fim.

Bernardo: A gente não ganhou nada pra fazer. Isso você pode contar. E também não vamos ganhar dinheiro, porque não tem como ganhar dinheiro com esse filme. Esse filme é todo roubado, assaltado… 

Lorenna: Ele é hackeado, né.

Bernardo: O problema é que, quando você está nos Estados Unidos e você é o Arthur Jafa, o MoMA [Museu de Arte Moderna] paga para você fazer isso. No Brasil, o máximo que a gente vai conseguir é pagar os advogados pra não ser processado.

Lorenna: Esse filme é totalmente o Evento Racial. Ligar o fato da galera consumindo, aqueles corpos entrando no supermercado…

Saskia: Mil milhões, mil milhões, mil milhões…

Lorenna: Sim, esse movimento do consumo… Até o lance da propaganda da máquina de lavar, aquilo lá é um anúncio. Isso aqui é capital, com todo o conteúdo racista disso. E aí, quando vocês derivam para essa coisa da história, de contar uma história em relação às pessoas escravizadas, por exemplo, isso fica indo e voltando. Essa dimensão de que aquilo que está no passado está aqui. Pode ser uma coisa óbvia? Sim. Mas o filme produz isso sem necessariamente dizer isso. É pela imagem. E eu acho que hoje falta muito essa prática de produzir coisas pela imagem no cinema contemporâneo, sobretudo quando pensamos cinema negro.

Bernardo: Por isso que a gente idolatra Glenda Nicácio e Ary Rosa, porque ali há outra linguagem. É outra experiência, outra forma de pensar o cinema. Por isso que a gente adora André [Novais Oliveira] e Gabito [Gabriel Martins]. Por isso que a gente adora, sobretudo, o Lincoln Péricles. Talvez ele seja a influência mais apócrifa e inaudita do Caixa Preta.

Lorenna: Filme dos Outros (Lincoln Péricles, 2014), né, pô.

Bernardo: Filme dos Outros, Filme de Aborto (2016), Aluguel (2015). A forma como ele usa a legenda em Aluguel me inspirou muito a fazer a legenda do Caixa Preta. E é isso, né, no circuito de festival tem que ter a legenda queimada no filme, acho isso problemático pra caralho…

Saskia: Doeu pra mim.

Bernardo: É, porque tirou a caixa preta. 

Saskia: Perde o blecaute. A legenda causa luz. E a pessoa tem por que olhar para a tela. Nas outras sessões do filme, rolava esse momento onde cada um agia de uma certa forma. Rolava essa experiência do que você faz quando a imagem lhe é tirada. O conforto da imagem no cinema, de você estar no escuro ou você estar enxergando no escuro.

Bernardo: Tem outro pavor. Quando você está no escuro e quer saber o que vem por aí – sobretudo quando tá no meio do filme e o black anuncia uma mudança. Poucos cineastas dão o black e volta. Godard fazia muito e Tarantino também faz. Você está num plano, dá um black, e volta para o mesmo plano pouco depois. Por isso a legenda me deu uma agonia tremenda. Mas a projeção de Tiradentes, a qualidade da imagem e do volume ressaltaram a diferença de arquivos. O som tava potente, tava alto mesmo. É um filme alto, foi masterizado para isso. Foi uma experiência foda. Foi uma experiência incrível para mim ter visto o filme desse jeito, eu acho que pra Saskia também, porque a gente trabalhou muito nesse filme. Com toda precariedade de alguém fazendo o primeiro filme, mas ao mesmo tempo com as ideias muito certas. E sabendo que essas ideias estavam apontando para limites. Limites gerativos, da própria sala de cinema, da própria tela, da própria questão da legenda, do som, volume e tal; e questões de produção, porque é um média, não vai circular, tem dificuldades, mas ao mesmo tempo te provoca. Se você entrar naquela onda ali e vai até o fim, você vai acabar dançando ou dormindo. E dormir é importante, porque quem não dorme, não sonha. Tem que dormir um pouco no cinema. Às vezes eu leio umas resenhas críticas e fico pensando: “pô, podia ter dormido no meio do filme”. Talvez acordando e pegando no final, teria captado algumas ideias mais interessantes do que essas que estão aí. A crítica tem que estar à altura do cinema, do filme. Ela não pode ficar se mediocrizando em administração de gosto e dinâmica de influência, no sentido de “vou formar você aqui”. Você aprende cinema vendo filme. Conversando sobre filme, pirando nos filmes, gostando e tendo prazer. Acho que o Caixa Preta é um filme que dá prazer e, sobretudo, não é irônico. Eu acho que isso é uma coisa importante de se dizer.

Saskia: A gente tem que matar a ideia de ironia.

Bernardo: Não é um filme irônico. É um filme que está brincando com uma série de coisas, mas com pureza d'alma. Tem malícia, é bobo, tem malandragem, mas a gente não tá desdenhando de nada ali. Nada. Não tá ironizando com o olhar superior a nada. Se parece, é porque saiu do nosso controle.

Lorenna: Isso chegou pra vocês?

Bernardo: Chegou. Chegou, mas eu me antecipei também. Imaginei que muita gente pudesse achar que a pastora Ana Lúcia era uma ironia, um olhar por cima para os evangélicos. E a gente tomou muito cuidado para tentar fazer com que o filme ressaltasse a beleza sinistra daquele momento.

Saskia: Quando eu e tu morrer, esse filme é dela. Pra mim, a pastora Ana Lúcia é a grande heroína e a vilã, ao mesmo tempo.

Cena de Caixa Preta

 

Gabriel: É a própria contradição brasileira.

Saskia: A vítima, a heroína, a vilã e a coadjuvante!

Lorenna: Quando eu vi que termina daquele jeito, com essa performance de gira – porque é pura macumba aquilo ali! E não é só porque o filme cruza a ligação das imagens e do som.

Gabriel: A macumba já tá ali.

Lorenna: Por si só, aquilo já é um transe que vem de muitos outros lugares que não necessariamente esse branco ocidental que a religião espera. Eu achei um gesto muito corajoso. Primeiro porque a gente está nesse momento político onde evangélicos representam tudo o que representam hoje.

Bernardo: Líderes políticos ligados à religião evangélica. Neopentecostal, mais preciso dizer isso.

Saskia: É como o Mano Brown falou. Se tu perder o diálogo com essa galera e só ir pela perspectiva do julgamento… A gente acaba aplicando catolicismo na hora de julgar quem tá dentro do evangelismo. É um diálogo. Eu tô criando um diálogo com tudo aquilo que o filme traz pra pastora Ana Lúcia vir abençoar no final como a salvadora. Não é uma crítica, não é uma ironia.

Gabriel: “Tua vitória tem sabor de mel.”

Bernardo: Foi uma decisão não legendar essa parte final.

Lorenna: Eu fiquei me perguntando isso, daí quando tu falou agora eu entendi.

Bernardo: É, porque eu já tava sofrendo demais com a legenda ao longo do filme. Nesse momento aqui, deixa a confusão.

Lorenna: Tanto que a galera tava batendo palma com ela.

Saskia: Foi ótimo!

Gabriel: E foi incrível porque a galera tava batendo palma, vem a tela preta, vem os créditos e aparece a imagem do policial negro pintado com o rosto branco. E a plateia fica sem saber o que fazer.

Saskia: Normalmente esse é o maior momento de tensão do filme. Não tem silêncio no filme. Inclusive no momento em que o pincel vai pintando a tela de preto, eu lupei o final do áudio do Bernardo falando, onde ele só respira e desliga o áudio. Eu só lupei aquilo pra não deixar o silêncio. E daí o silêncio vem com essa imagem. Nas outras sessões, a galera já tá mole com a pastora Ana Lúcia e se enrijece com aquela imagem. O silêncio se propaga. E dessa sessão foi exatamente o contrário. A galera começou a gritar, botar para fora.

Lorenna: Mas eu acho que tem a ver com o som.

Gabriel: Tem a ver com o som, tem a ver com a própria experiência do filme, com a tenda…

Bernardo: Caixa preta bonitona. Eu fiquei emocionado. Tava lá, e pá, Caixa Preta. Agora é o momento. Se não aplaudir, fodeu. 

Gabriel: E é justamente isso. Pensar em como você lida com aquela imagem após ter visto Ana Lúcia, após ter sentido toda aquela energia. E tem outra coisa que eu queria trazer, porque a própria ideia da legenda me levou pra ideia da experiência gringa mesmo. Como é esse filme reverberaria lá fora, sendo eminentemente brasileiro?

Bernardo: Passou no RABIA, um festival universitário de Buenos Aires. Não estava tão cheio, com umas 20 pessoas, teve um debate louco… Eu daria tudo pra ver os argentinos debatendo esse filme. 

[silêncio]

Saskia: Derivamos.

Bernardo: Derivamos. Olha que beleza, eu adoro isso.

Saskia: Era a relação da última imagem, né?

Bernardo: Ah, essa era a fotografia de um fotógrafo americano possivelmente negro, meio desconhecido, chamado Douglas Harris. Se você entrar no site Independent Voices of the Black American Press (acesso aqui e aqui), você consegue baixar uma série de revistas dos anos 1960 e 1970 ligadas ao movimento negro norte-americano. São muitas revistas. Eu palmeei aquelas revistas todas e fui bem rigoroso, de só realmente usar a imagem que eu olhar, bater o olho e dizer: “é ela”. Eu abri mais de 200 revistas. E quando eu olhei e falei “é ela” porque, bicho, veja bem o que é. É um policial negro…

Cena de Caixa Preta

 

Saskia: Quando você mandou essa foto no grupo, eu larguei meu celular e falei: “preciso pensar”.. Depois de todo o processo do filme, aquela imagem…

Bernardo: É um policial negro todo lambuzado de branco, de cara branca.

Saskia: É um policial! E eu gosto que a tinta escorre pois é como se ele tivesse escoado a máscara branca no peito. Um corte aqui. E eu tenho certeza de que isso não foi premeditado. 

Bernardo: Cara, por que eu falei antes da questão da ironia? Porque, de forma nenhuma, esse filme é uma resposta a nada. Número um. A gente sabe, acho que vocês dois concordam, que há uma intromissão indevida de valores neoliberais na luta dos povos racializados, da população negra e ameríndia. Há uma introdução indevida desses códigos e dessas formas de pensar que também penetraram de maneira indevida na produção cinematográfica, na recepção e no gosto. Isso, de alguma maneira, acaba ressoando um tipo de produção cinematográfica que corresponde, vamos dizer, a elementos da agenda neoliberal. Isso tá ligado diretamente às corporações e, portanto, os festivais de cinema ficam suscetíveis a elas. Eu tenho toda uma crítica ao tipo de cinema positivo de festivais como Locarno, por exemplo, essa positividade esquemática e algorítmica que não tem ritmo e que não é povoado. Isso existe e isso é um problema no cinema brasileiro hoje, inclusive. Acho que temos aí uma retomada da retomada onde as as classes que são favorecidas e sempre foram favorecidas no sentido de fazer cinema estão retomando o cinema por dentro das agendas identitárias. Isso ressumbra um cinismo insuportável. A gente entende isso. Agora, o Caixa Preta não é uma resposta a isso. Por isso eu falei que não é uma ironia, não é uma pirraça, não é uma resposta. Eu realmente acredito naquilo que a Kênia Freitas escreveu uma vez, onde ela dizia que o cinema negro é um cinema com uma potência de expansão infinita. Eu acho essa fórmula linda e eu levo ela muito a sério. Eu acho que o Caixa Preta, de alguma maneira, carrega um pouco dessa preocupação. De ser um trabalho sério, sem ironia, papo reto, mas que também delira, dissolve, queima, faz dançar e faz dormir. Que tem uma experiência. Claro que, evidentemente, seria ideal que a gente não precisasse interpretar o filme. Que o filme pudesse passar e curtir. E cara, repetindo, valeu Tiradentes. Foi uma projeção foda, volume alto pra caralho! As pessoas vindo me perguntar: “mas você tem certeza que é esse volume?” Aí eu falei: “porra, esse bonde já partiu. Não volta mais”. 

Lorenna: Acho que é bancar também essa deseducação do que é estar na sala de cinema. A provocação também é essa quando Saskia diz no começo que pode dançar, bater palma e fazer o que vocês quiserem. 

Saskia: É, saia da sua zona de comportamento.

Lorenna: Inclusive de ir embora também, como algumas pessoas.

Saskia: Eu adoro quando vejo as pessoas saindo, que aí você vê quem tá saindo, quem tá ficando, quem tá se engajando cada vez mais, se espremendo na cadeira.

Lorenna: E é o corpo, né, é o corpo que tá falando ali. Pra você ter a audácia de levantar, é porque alguma coisa ali movimentou.

Saskia: É o espasmo. É o espasmo.

Bernardo: Não entregamos!

Lorenna e Gabriel: Entregou demais!

Saskia: O contrário, quebrou limites demais.

Bernardo: Não, eu quis dizer assim. Hoje em dia, a gente importou essa merda dessa palavra também. Foi uma ironia. O delivery, né. Então, assim, a pessoa que levanta, muitas vezes, está pensando como cliente. “Ah não, esse produto eu não quero”. Levanta e vai. Não entregamos o produto.

Saskia: É a mesma coisa quando você coloca pimenta demais no prato. Tem gente que não come, reclama pro gerente e pro cheff. Mas tem gente que gosta de pimenta pra caralho. Come e toma uma água depois, entendeu? 

Gabriel: Deixa arder, né.

Saskia: Bota pimenta, bota um pouco de sal, daí vem o açúcar e, porra, não quero açúcar agora não, tô comendo salgado. Queria uma cachaça, mas daí veio uma coca-cola. Daí da coca-cola vai pra cachaça, volta pro sal e do nada você tá comendo pedra. Você vai comer pedra se te disserem, numa tela de cinema, “coma pedra”? Teve gente que comeu pedra. Dançou em cima das pedras.

Bernardo: João Cabral de Melo Neto, né. “A Educação pela Pedra”. Engasga na goela e faz uma fala sertaneja.

Saskia: Muito louco isso. Hoje choveu e encheu bastante, assim, uma rua que tava passando um córrego. Daí um cara tava com um kenner fodão, brancão e não queria estragar. Eu botei duas pedras ali para ele passar por cima. Aí depois a gente ficou brincando com essa ideia, a de que eu botei pedras no caminho para ele poder passar mesmo.

Bernardo: Que lindo!

Gabriel: Bonito mesmo.

Lorenna: Isso pode ir para o filme em algum sentido.

Saskia: É, então. São pedras no caminho para a pessoa ir andando, se equilibrando ali, resvalando, mas salvando o kenner de cristal.

Gabriel: E tem uma coisa… Enfim, deriva, né, gente, vamos derivando essa conversa e depois a gente organiza.

Lorenna: Organiza não, pô.

Gabriel: Não necessariamente, nem sempre é pra organizar. Mas pensando em República (2020), de Grace Passô, que vocês utilizam justamente naquele momento. “O Brasil é um sonho”; “o meu Brasil acabou, o seu nunca existiu”...

Cena de Caixa Preta

 

Saskia: Eu fiquei de cara quando vi República. E eu me lembro que uma das coisas que mais me perpassou disso foi o fato de que o acontecimento, a narrativa, o plot inteiro acontece no momento em que Grace Passô olha para uma tela. Ela acorda, olha o celular e olha para uma tela. Tu só vê a luz na cara dela. Só uma luz. E ela vai mudando a expressão e toda a informação que ela recebe naquela luz muda a narrativa. A narrativa vem através daquela luz de informação. Eu achei isso muito bizarro. É uma ficção científica que acontece numa ligação de telefone. Você entende o que está acontecendo porque ela liga e conta para a mãe dela. Eu achei aquilo incrível. Lembro que vi umas duas vezes e cinco minutos depois eu estava baixando, sampleando na cara dura mesmo. Eu nunca tinha falado com ela. E ela grita: “É! É! O Brasil é um sonho!”. Puta que pariu. Já peguei e já comecei a misturar um monte de sample ali pra fazer essa faixa. E quando a gente estava montando o filme a faixa já tinha sido lançada. E é muito engraçado, porque ela caiu do Spotify, por conta dos samples. Eu sou muito irresponsável com essa coisa de direito autoral. Tinha ali Candeia, Clementina de Jesus, Ednardo e Grace Passô. Ela não passou no Spotify por causa do sample de Ednardo, o único branco da track. Foi o que brecou a track de passar ali. Daí foi isso mesmo… Eu pensei: “vou enfiar essa track no máximo que eu puder botar”. Ali a gente já estava falando sobre o Brasil. Saiu um pouco da diáspora, já foi para uma antiáspora brasileira, não sei que porra é essa, e “o Brasil é um sonho”. Agora é que entra o carnaval. E essa coisa também da população. No começo tem aquele monte de gente lutando por comida e acesso, naquela luta por viver, e chega o carnaval, que é também uma certa luta por viver, uma afirmação de direito. Retrato do Brasil. Tem até uma cena de uns carnavais antigos que tem uma galera de white face na rua, que nem a capa, e depois uma galera vestida de navegador português. O carnaval tankando Napoleão.

Lorenna: Me lembro do Maracatu Rural, porque eles pintam o rosto de preto, a galera que trabalha com cana. Então uma das justificativas, bem entre aspas…

Bernardo: Justificativa técnica, porque você pega aquele negócio e passa na cara pra ela ficar preta. 

Lorenna: Exatamente. Daí traz essa relação com a fuligem da cana.

Bernardo: As Catitas de Barachinha, por exemplo, nascem na Zona da Mata, em Nazaré da Mata. Trabalho, lugar de trabalho pesado de cana. Lugar onde foi aviltado por 200 anos no plantio da cana. Esse lugar hoje é um espaço que tem dificuldade com água e outras coisas, mas é um lugar exuberante em termos culturais. Tem 300 maracatus… E as Catitas de Barachinha são homens negros que se pintam de preto. Então esse valor absoluto da cara preta, do blackface, a gente tá importando debates. A gente tá importando modos de ver e palavras fechadas, porque existem outras experiências.

Saskia: Tem dois vídeos que eu quero muito usar. O Brasil é um produtor de vídeos inenarrável. Pós-meme, Instagram, TikTok e Reels. E tem um que são dois caras. Literalmente o negão pega a saca de farinha, bota na cara, e o branco bota o carvão na cara – porque parece que eles estão se estrangulando dentro do saco –, e eles saem sorrindo, o preto e o branco, completamente pintados. E o outro é um que eu te mandei esses dias. Um cara numa festa, dançando, já de manhã, e ele se pinta de farinha, pinta o outro de farinha, dá farinha para os outros se pintarem, a galera no fim do baile.

 

Bernardo: O whiteface mais louco do cinema brasileiro é a Isabél Zuaa no Kbela (Yasmin Thayná, 2015). Aquilo ali é…

Gabriel: Clássico.

Lorenna: Pra finalizar, quero retomar uma questão que vocês falaram sobre direitos autorais e que o Gabriel começou com essa ideia de cinema mutirão. Ontem, a Glenda e o Ary falaram muito que, quando eles estão juntos, eles não estão dividindo uma direção, e sim tendo ali duas pessoas inteiras, com vontades inteiras que se somam. Ary falou isso: “quando vocês veem o filme, é 100% eu, é 100% Glenda, não é 50% de cada um”. E eu achei isso muito foda. E vocês são dois. Queria ouvir vocês sobre isso, dessa soma, e como isso desafia algum lugar. Ainda que vocês sejam pessoas pretas, como isso desafia também a própria forma como se conduz hoje uma leitura disso, dessa autoria em relação ao próprio cinema negro.

Bernardo: Eu acho genial a proposta de cinema mutirão nesse momento porque, enfim, de alguma forma, o problema do cinema coletivo no século 21 é um problema que ficou por baixo dos panos. Agora, um set de filmagem é um coletivo, tem algo de mutirão. Eu acho que quando a gente fala de cinema coletivo, cinema mutirão, a gente tá falando, portanto, de um cinema que vai disputar, no estilo, alguma coisa da ordem da ação e da experiência. Isso que você acabou de falar da Glenda e do Ary. Eles não estão 50%, eles estão 100%. Cinema mutirão é estar todo mundo 100% pra fazer o filme acontecer.

Saskia: Eu acho que cheguei ali no 105%, não sei. Teve ali uns 5% que já não era nem mais eu, era algo a mais que eu. Era 100% somado a algo a mais que veio nesse transe desse filme. Eu já sou 110% unida ao que Negro Leo e Bernardo Oliveira me botam no caminho. Acho que já tem uma porcentagem a mais. Inclusive, sobre essa coisa do mutirão e da coletividade, a gente estava trabalhando com pessoas que nem estavam presentes com a gente, mas elas fazem parte desse set de filmagem. Muita gente.

Bernardo: Sabe o que é foda? Pintou uma grana para fazer o trabalho da Ciranda do Gatilho 1. Então a gente tinha que resolver aquilo, não tinha opção. 

Lorenna: Tem que entregar.

Bernardo: Tinha que entregar! (rindo)

Saskia: Mas a gente já queria fazer antes, eu já queria fazer muito antes. E esse aqui [ela aponta para o Bernardo] falava assim: “não, não, segura, segura”. A primeira cena veio disso. Vamos fazer.

Bernardo: Mas com o projeto, agora que tinha dinheiro, vieram os três. E começou a loucura. A loucura da ciranda, começou a cirandar. E a gente começou a ver que precisava de quantidade, não só qualidade. A qualidade inclusive podia matizar ainda mais o negócio, de trabalhar a qualidade em diversos registros. Aí começou a ideia do acúmulo. Então não vejo nada mais característico que mutirão.

Saskia: Um arrastão. Um arrastão dialético, tem que marcar essa palavra.

Bernardo: Eu não gosto de dialético. Múltiplo.

Saskia: Múltiplo.

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