Permanecem os ecos: contos do crime em Ceilândia | Crítica de ‘Mato Seco em Chamas’ (2022), de Adirley Queirós e Joana Pimenta

por Renan Eduardo | Thu Feb 23 2023 19:12:06 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Entre os muitos traços que atravessam a filmografia de Adirley Queirós, um dos mais densos e complexos é a relação entre o cinema e a música. Seja por sonoridades hip hop, como o rap e o funk, ou pela música popular brasileira, como o brega e o brega funk; ritmos de origem negra, popular e/ou periférica são dispositivos sonoros constituintes em quase todos os filmes do cineasta. Em sequências como a gravação do jingle-protesto em A Cidade é Uma Só? (2011) ou a explosão de Brasília por uma bomba cultural, composta por cantos da Ceilândia, de Branco Sai, Preto Fica (2014), a música sempre se apresentou, nas obras, como um artifício à serviço da narrativa. Contudo, em Mato Seco em Chamas (2022), longa-metragem que compõe a filmografia de Adirley Queirós e Joana Pimenta, a relação inter artística entre a primeira e a sétima arte se adensam enquanto prática estético-narrativa.

A faixa Tô Ouvindo Alguém Me Chamar e o álbum Sobrevivendo no Inferno, assinado pelo grupo de rap Racionais MC’s, assemelham-se, ao seu modo, ao adensamento da prática  hip hop - negra - adotada por Queirós, Pimenta e Cristina Amaral (montadora do filme) em Mato Seco em Chamas. O álbum se destaca pela formalização de um “novo tipo de voz coletiva” (OLIVEIRA, 2018, p.24) que retrata, documenta, ficcionaliza e fabula a realidade brasileira, em especial da periferia paulista, nos anos 1990. Um “evangelho marginal” (OLIVEIRA, 2018, p.18) e popular, nas palavras de Acauam Silvério de Oliveira ¹. A faixa em questão, interpretada por Mano Brown, chama a atenção pelo storytelling não-linear e fragmentado que transita entre os delírios e as recordações, o vivido e o imaginado – tal qual o novo filme assinado por Adirley e Joana – de seu anti herói em seus últimos momentos de vida, após ser baleado.

 

Leá Alves e Joana D’Arc Furtado em Mato Seco em Chamas

 

 "As 'história’ chega aqui dentro das muralha e todo o DF encarcerado só fala de você. Toda noite eu conto a nossa história aqui, eu conto a lenda da Chitara, a rainha da 'kebrada'".

 

Assim como Léa (Léa Alves) escreve sobre a lembrança que é mastigada noturnamente e a alternância temporal da faixa dos Racionais, Mato Seco em Chamas se estrutura através do gesto propagador das lendas das Gasolineiras da Kebrada. As Gasolineiras são um grupo de sapatões ex-presidiárias, composto por Chitara (Joana D’Arc Furtado), Léa e Andréia (Andréia Vieira), que passam a controlar e comandar uma rede ilegal de refino e distribuição de gasolina após encontrarem um poço de petróleo na Ceilândia-DF. A partir disso, o filme se desenvolve em um movimento pendular que alterna entre suas premissas ficcionais – um poço de petróleo no meio da Ceilândia, um grupo de militares neonazistas e a campanha eleitoral de Andréia – e as memórias de suas atrizes, contadas majoritariamente por relatos das personagens. Utilizando-se do som e da montagem como artifícios centrais, a não-linearidade da narrativa e as diferentes sonoridades que o filme confecciona constroem um imaginário das gasolineiras da kebrada que pulsam como ecos dos contos vividos e fantasiados por aquele grupo de mulheres, à semelhança da faixa Tô Ouvindo Alguém Me Chamar.

Para investigar quais são e como se dá a confecção dos imaginários e sonoridades que atravessam Mato Seco em Chamas, é preciso identificar, racializar e nomear o grupo de sujeitos que estão ligados a essa feitura. Esse recorte, presente em toda a filmografia de Queirós e também nas parcerias com Pimenta ², é delimitado pela primeira geração de indivíduos nascidos na Ceilândia – os primeiros filhos de candangos ³ que não nasceram em Brasília. Dessa forma, a amostra “territóriogeracional” implica em uma racialidade e ancestralidade similares, ao passo que plurais e diversas, de uma coletividade de sujeitos e personagens que partilham de formas de falar, consumir e produzir cultura. Assim sendo, moldar, transformar e deformar o Distrito Federal através da arte se apresenta como uma alternativa ao projeto de higienização que forjou essa geração de indivíduos. Com esse propósito, o som assume um papel fundamental para a invenção de outros mundos possíveis. Em Mato Seco em Chamas, a sonoridade construída e confeccionada transforma este território forjado na gentrificação num DF faroeste ⁴ contemporâneo.

 

Ceilândia (1973) / Reprodução: Histórias de Brasília

 

O faroeste é a aposta que a dupla de diretores traz para as telas: um bangue-bangue ceilandense que mescla diversos símbolos e signos comuns aos clássicos “filmes de gênero”. Motos, armas e trocas de tiro, fogo e fumaça, ostentação, cigarro, assassinatos, quadrilhas e gangues são elementos marcantes em grandes filmes dos anos 1960 e 1970. Dispositivos narrativos como os negócios entre família dos Corleone em O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972), a trupe de motoqueiros e o conflito por gasolina de Mad Max (George Miller, 1979) e a disputa por hegemonia territorial de Por Um Punhado de Dólares (Sergio Leone, 1964) são igualmente presentes e constituintes no longa ceilandense. Essa mistura simbólica, somada a elementos muito particulares daquele território – como o rap gangsta ceilandense, DJ Guuga, a banda Muleka 100 Calcinha, a forma de falar, o gingado das personagens e a arquitetura local – caracterizam Mato Seco em Chamas como um filme épico do cerrado brasileiro. Um filme de máfia sapatão, negra e de kebrada que inventa, reinventa e se apropria do cinema de gênero. Um “neofaroeste” na periferia do planalto central.

Na materialidade sonora desse imaginário faroeste, Adirley e Joana se utilizam do híbrido entre a fala e o canto, o ritmo e a poesia (práticas também basilares à cultura hip hop – rhythm and poetry), como dispositivos de concretude musical para ficcionalizar e reinventar a realidade que cerca aquele grupo de mulheres. O gospel cantado por Léa enquanto ajeita sua arma e vigia o cavalo de petróleo, os cânticos entoados na igreja evangélica por Andréia, o coro dos motoqueiros, o ranger dos metais, o rap do PPP (Partido do Povo Preso) ou a cantiga da banda Muleka 100 Calcinha sobre “A Chitara, Rainha da ‘kebrada’” se constituem como performances sonoras do filme. Estas cumprem um papel fundamental de pulsão, reverberação e perpetuação dos contos do crime e da lenda das gasolineiras. São, portanto, ecos que permaneceram por todo o território.

 

Andréia Vieira em Mato Seco em Chamas

 

Estruturada por Cristina Amaral, a montagem tem papel central em instituir a memória, a lembrança e a fabulação enquanto ecos. Esse passeio entre temporalidades imbrica em uma história que começa na rua, continua na prisão, volta para a rua e assim sucessivamente, sem um começo, meio ou fim determinados. Tal reverberação “espiralar” de temporalidades, tal como trabalha Leda Maria Martins em “Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela”, me parece um gesto que se repete ao longo de projetos que Cristina integrou, mas que também se manifesta em outros filmes e produções artísticas tidas como “negras”, como na já mencionada faixa Tô Ouvindo Alguém me Chamar ou no curta-metragem Curió (Priscila Smiths e P. H. Diaz, 2021), filme que se apresenta como uma “etnografia bairrista” que busca reinventar a “história oficial” de seu território.

Ademais, pensando na atuação de uma figura como Cristina Amaral, o binarismo entre o que é ou não cinema negro, por muitas vezes, é insuficiente para uma investigação mais profunda de negritudes que se manifestam além da figura do diretor(a) como autor(a) da obra. Olhar para outras produções audiovisuais enquanto experimentalismo negro ⁵ – como o jornalista e pesquisador GG Albuquerque faz em seu portal “O Volume Morto” trazendo obras feitas e distribuídas no TikTok e no Instagram – ou para atores e montadores sob a ótica de uma autoria coletiva da obra – tal qual Fabio Rodrigues Filho em Tudo Que é Apertado Rasga (2019) e Não Vim ao Mundo para ser Pedra (2022) –, se apresenta como uma investigação que visa examinar as complexidades e contradições da produção artística negra, especialmente brasileira. Diante de uma sociedade profundamente racista e colonial, que tem por praxe a invisibilização desse grupo de indivíduos, os gestos investigativos de GG, Fabio e outros pesquisadores são fundamentais para lidar com a pluralidade cultural e artística do negro no Brasil.

Sem reivindicar que a visibilidade ou a ascensão individual é a solução para este ou outros problemas, posicionar a autoria negra apenas da figura do diretor(a) não resolve muita coisa. Como bem examina a crítica e pesquisadora Mariana Queen Nwabasili (2022) nos textos “A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar” ⁶, sobre a “relação simplista entre presença ou representatividade negra entre realizadores do audiovisual e mudanças nas representações e visibilidades de negros nas obras desse setor”, a visibilidade neoliberal é uma armadilha de mercantilização da arte preta como salvação individual, não racial. Portanto, escavar “manifestações negras” para além desses binarismos é um trabalho espinhoso, complexo e constante, que não se finda em determinismos, mas preza pela contradição e pela multiplicidade que a negritude apresenta.

Diante desse cenário, Mato Seco em Chamas recusa uma lógica de progressão linear ou complementar do tempo, pois a mesma é insuficiente para encenar as fábulas ceilandenses das gasolineiras. A narrativa circula entre o vivido e o imaginado, a tranca e a liberdade, a prisão e a rua, a etnografia e a ficção. Os vestígios dessas histórias se propagam através de cartas, conversas, músicas, poemas, intervenções artísticas e sons que se configuram como uma memória coletiva daquele território que se difunde de quebrada em quebrada, o canto da Ceilândia.

 

NOTAS

1. Sobrevivendo no inferno / Racionais MC's. — 1ª- ed. — São. Paulo : Companhia das Letras, 2018

2.  Vale lembrar que Joana Pimenta é diretora de fotografia do longa Era Uma Vez Brasília (2017), dirigido por Adirley Queirós.

3. Termo pejorativo utilizado para referir-se a operários, em sua maioria nordestinos, que construíram Brasília e foram expulsos da capital. A Cidade é Uma Só? (Adirley Queirós, 2011) é um longa que explicita com clareza como se deu esse processo de gentrificação.

4. Título da música interpretada pelo grupo de rap ceilandense Mente Consciente, que contém o sample de Ennio Morricone, e encerra Mato Seco em Chamas. Ouvir em: https://www.youtube.com/watch?v=BpbpgqR-rq8&ab_channel=MenteConsciente-Topic

5. Ver mais em https://www.instagram.com/p/Ce_gGeyDF3t/ 

6. Trata-se de um texto dividido em três partes publicadas nesta Plataforma. Ler em: https://indeterminacoes.com/textos

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