A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar – Parte III: Insights para críticas artísticas por negras e negros

por Mariana Queen Nwabasili | Thu Jun 16 2022 18:14:35 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

“Se o objetivo da luta pela libertação negra, voltada a conquistar reformas, era tornar as estruturas sociais existentes igualitárias, então o pressuposto era de que a comoditização da vida cultural negra seria passivamente aceita, desde que as imagens produzidas fossem vistas como ‘boas’ ou ‘positivas’. E isso seria determinado pelo fato de as imagens criadas serem ou não vistas como úteis para promover a inclusão racial no discurso dominante. Situar a crítica cultural feita por críticos negros apenas no campo reformista do debate sobre imagens boas e más silenciou efetivamente um diálogo crítico mais complexo”, trecho de “Cenas de libertação: verbalizar este anseio”, bell hooks, livro Anseios: Raça, Gênero e Políticas Culturais, 2019.

“Devemos insistir em estar atentos às questões da forma do filme, em vez de focarmos apenas no conteúdo”, trecho de “Reivindicando os estudos de filme e mídia pretos”, de Racquel Gates e Michel Gillespie.

 

Além das reflexões mencionadas anteriormente, proponho humildemente também expor neste texto uma relação de percepções sobre estratégias possíveis e necessárias para uma crítica de cinema complexa e não condescendente feita por pessoas negras e sobre a representação-representatividade desses corpos em obras audiovisuais. Ou seja, para uma crítica que trate as produções de realizadores negros e as obras que representam negros e diferentes vivências de pessoas negras de forma madura, reconhecendo essas obras de fato.

A partir do que escreve a teórica marxista estadunidense Nancy Fraser (2007), o reconhecimento não está relacionado à legitimação de certas identidades como possíveis no mundo, mas sim à garantia de participação equânime e paritária de todos os tipos de atores sociais em debates sociais e político no espaço comum. A paridade de participação e, consequentemente, de escuta, é o que permite que todos os atores sociais se tornem pares em igualdade para toda e qualquer ação e elaboração na sociedade, sem que haja limitações, discriminações ou distinções negativas para isso. 

Ler e criticar obras artísticas de ou sobre pessoas negras requer um tratamento equânime com relação ao rigor valorativo direcionado a quaisquer e todos os artistas, necessitando, inclusive, o estudo de referências específicas para tecer observações críticas profundas e não somente elogiosas e superficiais a esses trabalhos sob a retórica (ou mea culpa) de um reconhecimento que, paradoxalmente ao que conceitua Fraser, confina os artistas negros ao julgo racista da infantilização. 

Aqui, lembramos do que escreveu Rosane Borges certa vez: “inevitavelmente, todas essas discussões me fazem lembrar bell hooks, pseudônimo (escrito em letras minúsculas) de outra crítica cultural de proa, que nunca é condescendente em seus textos. De Wim Wenders, passando por Madonna até chegar a Spike Lee, tem-se a elaboração daquilo que a própria pensadora chama de crítica cultural radical”.

 

Frame de Do the Right Thing (Spike Lee, 1989

 

Vamos aos insights, que escrevo também para consulta própria. 

  1. Acredito que a base de meu interesse e de alguma possível aptidão para a crítica ou análise crítica de artes, mais especificamente de cinema e teatro, deu-se nas aulas de interpretação de textos literários que tive com a professora de Língua Portuguesa Maria Teresa durante o Ensino Fundamental na Escola Municipal Amorim Lima, em São Paulo, onde estudei até a então 8ª série. 
  2. Portanto, penso que todo crítico de artes é um bom intérprete de textos e os textos e enunciados não se resumem àquilo que é verbalmente escrito ou dito.
  3. Se você gosta de interpretação de textos, considere a atuação como crítica/o de artes. 
  4. Daí, investigue as diferenças e proximidades entre resenha, resenha crítica, crítica artística, análise fílmica etc. Leia sempre esses textos e veja com qual desses tipos você mais se identifica. Então, vá dando contornos à sua própria “pegada” de escrita crítica. 
  5. Depois das aulas de interpretação de texto na escola, algumas análises críticas me marcaram: a que Ismail Xavier faz do filme Vertigo (Um corpo que cai, Alfred Hitchcock, 1958) no capítulo 2 do livro O olhar e a cena. E a famosa análise do livro Memórias de um Sargento de Milícias (Manuel Antônio de Almeida, 1854), feita por Antonio Candido no conhecido texto “Dialética da malandragem” de 1970.
  6. Muita coisa mudou também depois que me deparei com as perspectivas críticas da Teoria Feminista de Cinema, considerando sobretudo os escritos de Laura Mulvey e bell hooks. Esta última, uma grande referência pra mim principalmente no âmbito do pensamento sobre cinema e sobre a intelectualidade de mulheres negras.
  7. Minha formação e atuação como jornalista não me deixa contornar este ponto: críticas e críticos negros de artes devem lembrar sempre que nossa escrita é um ofício, um trabalho lapidado por meio de formações ao longo da vida e do cultivo de referências e vocabulários (literário, teórico, fílmico, estético etc). Portanto, nosso trabalho como escritores deve ser valorizado como tal, o que, numa sociedade capitalista, implica numa remuneração justa que nos permita continuar a existir, a assistir filmes e a escrever justamente. 
  8. Sendo assim, cuidado com propostas exploratórias e com a “auto-exploração” para supostamente circular ou firmar seu nome em um meio.
  9. Saiba ou procure saber e usar termos técnicos do cinema sobre, por exemplo, enquadramento, montagem e mise en scène etc. São termos que ajudam no momento de escrever análises, mas que não devem engessá-la. 
  10. Nas críticas que se propor a escrever, descreva as personagens em termos físicos, subjetivos, sociais e históricos. Por exemplo, considerando a própria trama, em que tempo histórico elas vivem?
  11. Tente relacionar e analisar criticamente a relação dessas instâncias, pensando em verossimilhanças quanto à realidade (social) dos autores e leitores e à verossimilhança interna da obra – entendo como verossimilhança interna as amarrações de sentido que a obra constrói de forma consistente, de acordo com a realidade do próprio universo construído e apresentado na trama.
  12. Faça tudo isso também com personagens com as quais o/a protagonista se relaciona por desejo, repulsa, contraste antagônico etc.
  13. Identifique quais as relações e moralidades dos narradores frente às questões e ações dos protagonistas? Quais as leituras sociais (verossimilhança extra diegética) das motivações das personagens e das relações disso com as escolhas e pontos de vista dos narradores? O que isso diz sobre o tempo histórico em que o filme foi feito?
  14. Pesquise sobre os/as autores/as do filme. Quais outros filmes fez/fizeram? Quais características de seus outros filmes se repetem nesse filme? Quais não? Que “linhas cinematográficas” esse/s cineasta/s e o filme analisado fazem lembrar?
  15. Preste atenção nas línguas e áudio dos subalternizados nas tramas. Afinal, segundo Shohat e Stam (2006), um “cinema eurocêntrico”, por exemplo, pode se revelar por meio não só das personagens ou do enredo, mas também da iluminação, dos enquadramentos, do som e, consequentemente, da língua falada nos filmes. É este último aspecto, aqui associado ao volume e à forma das falas das personagens no cinema, que mais me interessa, uma vez que ao menos no cinema de Hollywood a língua inglesa e as línguas europeias passaram a ser mais “cinematográficas” e universais do que outras.
  16. Pense como a forma e estilo do seu texto crítico pode se relacionar com a forma-tema do filme criticado.
  17. Acredite nas percepções e interpretações que surgem no ato da escrita e não só nos momentos antes de escrever. Tem coisas que só se mostram no fazendo, no escrevendo, no encadeando ideias.
  18. Tenha mais dúvidas do que certezas interpretativas sobre os filmes. Obviamente, não há superinterpretação possível frente à representação na tela, mas as leituras também são construídas por cada leitor/a que se dispõe a ler, que mergulha e compactua com o jogo proposto pela obra.
  19. Deixe o texto descansar ao menos três dias. Releia. Volte a ele e faça alterações.
  20.  Peça para alguém de confiança (que assistiu ao filme criticado!) leia seu texto/análise crítica e faça críticas. Escute suas críticas. Troque ideias. Melhore o que não ficou evidente. Defenda o que tiver convicção sobre a perspectiva e argumento interpretativos e veja se isso está evidente no texto. Transcreva essa defesa no texto para deixar evidente, caso não tenha ficado.
  21. Exercite ou aprenda a exercitar a auto edição de seus textos. Talvez você sempre será sua leitora/seu leitor mais exigente e preocupado com a qualidade do que escreveu e com a forma de sua veiculação.
  22. Não se prenda à expectativa de uma recepção ou aceitação positiva de seu texto crítico nem pelos realizadores da obra criticada nem por seus pares de ofício. 
  23. Assista a filmes brasileiros de diferentes décadas.
  24. Leia sobre a história do cinema latino-americano, sobre a história do cinema brasileiro, sobre vertentes experimentais do cinema nacional e internacional.
  25. Vá (muito) ao teatro. Essa talvez seja a arte mais efêmera e potente para exercitar a leitura de cenas, dos caminhos da direção, da expressividade de dramaturgia/das construções dramatúrgicas, da diferença que as atuações de atrizes e atores fazem para elevar ou “afundar” uma obra. 
  26. A crítica é um ato de coragem para expor a si e percepções por vezes inconvenientes sobre alguma obra. Então, sejamos corajosas para escrever e pensar de fato contemporaneamente, de forma talvez deslocada do que atualmente é vigente ou se tornou corrente. Afinal, pessoas minorizadas e invisibilizadas também criam hegemonias de pensamentos, temas, abordagens. 
  27. A crítica é uma arqueologia. Uma tentativa não declarada de encontrar e entender escolhas criativas e de atribuição de sentidos pensadas pelos realizadores e também pelo desejo insubordinado das imagens a eles e da montagem no encontro com as referências dos espectadores/leitores. 
  28. Os filmes, por muitas vezes, são companheiros (e também escape) frente à realidade e aos períodos (internos e externos) ásperos. Com eles sonhamos acordadas, mergulhamos em histórias mais interessantes e resolvidas (mesmo que por meio de “não resoluções”) do que as nossas. 
  29. Assistir a filmes é sonhar acordada junto com as realizadoras/os realizadores e todos mais que viram e verão aquelas imagens, aquelas cenas. É acompanhar sonhos de alguns. É ver exatamente o que alguns vários viram (no set, no cinema, em casa). É uma fruição autônoma e coletiva.

Referências 

Artigos

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Links

Negro tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado no Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-08/risco-de-negro-ser-assassinado-e-26-vezes-superior 

População negra é a mais afetada pela insegurança alimentar: https://drauziovarella.uol.com.br/alimentacao/populacao-negra-e-a-mais-afetada-pela-inseguranca-alimentar/

Masp usa capa decolonial, mas veta fotos do MST e trabalho de curadora indígena: https://theintercept.com/2022/05/17/masp-capa-decolonial-veta-fotos-mst-trabalho-curadora-indigena/

Encontro 1: LEDA MARTINS - ESTUDOS EM TEATRO NEGRO: https://www.youtube.com/watch?v=cmiemy5gJkI

Tiranias da subjetividade, alteridade radical!: https://www.youtube.com/watch?v=xzg6rsg229s

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