A ‘representação-representatividade’ não irá nos salvar – Parte II: ‘Tirania da subjetividade’ e comoditização das diferenças

por Mariana Queen Nwabasili | Thu Jun 16 2022 18:03:22 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

“[...] o terreno de ‘combate’ se desloca da luta de classes para centrar-se no protagonismo da fala. Um dos grandes problemas dessa visão é que o capitalismo pode se apropriar, e efetivamente o faz, de discursos que seriam subversivos para esvaziá-los deste conteúdo e torná-los funcionais para a sustentação do sistema [...] O que anos de ofensiva neoliberal mostraram é que o capitalismo é capaz inclusive, de colocar sob seu guarda-chuva vozes dissonantes para retirar qualquer potencial contestatório que pudessem ter [...] oferecendo como programa o poder ou a fala das mulheres negras dentro dos espaços já oferecidos pelo capitalismo”, trecho de “As armadilhas do liberalismo na luta das mulheres negras”, Letícia Parks e Flávia Telles, 2021. 

“Devemos parar de defender a representação como um marcador do progresso racial e, em vez disso, começar a nos concentrar nos temas e ideias com os quais essas representações se engajam. Por tempo demasiado, ambos os estudos acadêmicos e os populares do filme e mídia pretos se concentraram muito estreitamente na mera presença de corpos pretos, tanto na frente quanto atrás da câmera. Corpos pretos não são ou se equivalem à pretitude. Pretitude não necessariamente se equivale à libertação ou à reabilitação preta. Um estudo do filme e mídias pretos que apenas iguala a inclusão de realizadores e personagens pretos a uma prática cinematográfica revolucionária nunca efetuará verdadeiramente uma transformação, mas antes, simplesmente justificará uma história de corpos pretos trabalhados por e para a branquitude em níveis ideológicos e formais”, trecho de “Reivindicando os estudos de filme e mídia pretos”, de Racquel Gates e Michel Gillespie.

 

As ideias de que as representações social e audiovisual são sempre sinônimo de representatividade, de que a presença negra entre realizadores por si só é capaz de aumentar o número de atores desse grupo nas obras e de que isso supostamente leva a mudanças disruptivas no regime de visibilidade dos negros em filmes, telenovelas e séries, por exemplo, negligenciam percepções como a de que nosso processo de construção de identidade ao longo da vida se dá de maneira não linearmente presumível. Isso quer dizer os lugares sociais aos quais nascemos vinculados e de certa forma alienados não determinam nossas identidades nem nossas visões de mundo ou escolhas artísticas.

O teórico jamaicano Stuart Hall (2000) define que as identidades são, no limite, posições reivindicadas pelos sujeitos, e que há um “chamamento” para que isso ocorra. Esse “chamamento” se dá por meio de “discursos e práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como “sujeitos sociais de discursos particulares”. Nesse sentido, as identidades também são fruto das representações – uma das principais importâncias das representações e da disputa por construí-las – e dos discursos que mais têm força ou volume para nos tornarem seus resultados, para circular e nos interpelar a depender de onde nos dispomos a estar e dos sujeitos que nos dispomos a nos tornar. Assim, mais uma vez é preciso problematizar quais conteúdos e discursos têm mais força para emergir em dado momento histórico e cultural e interpelar diferentes e múltiplos sujeitos em diferentes lugares e posicionamentos sociais, culturais etc.

No livro “Pele negra, máscaras brancas”, o psiquiatra martinicano Frantz Fanon chega a abordar algumas vezes o papel que a representação simbólica contida em determinadas revistas ilustradas e em determinados filmes tem sobre a psiqué dos negros colonizados. “Há uma constelação de dados, uma série de proposições que, lenta e sutilmente, graças às obras literárias, aos jornais, à educação, aos livros escolares, aos cartazes, ao cinema, à rádio, penetram no indivíduo – constituindo a visão do mundo da coletividade à qual ele pertence”, escreve o autor. 

Seus pensamentos sugerem que as representações com as quais as pessoas negras – infeliz e sintomaticamente sempre definidas por Fanon como “o homem negro” – estiveram fadadas a se deparar levaram esse grupo a negar a si mesmo, uma vez que foi sempre construído e representado de forma negativa, e a cunhar sua identidade por meio de uma identificação com o colonizador branco e com os discursos colonialistas racistas que atribuíram a esse colonizador características positivas de uma humanidade plena e universal. E “o preto visa ao universal, mas, na tela dos cinemas, mantém-se intacta sua essência negra, sua ‘natureza negra’”, afirma Fanon. “Em um cinema da Europa, a coisa é muito mais complexa, pois a plateia, que é branca, o identifica automaticamente como os selvagens na tela. Esta existência é decisiva. O preto sente que não é negro impunemente”, arremata. 

A partir desses escritos, é possível entender também que, como dispositivo colonialista e depois nazifascista, a racialização dos negros, ou seja, a construção dos negros como Outros dos brancos e com características físicas e culturais a serem inferiorizadas com relação a estes, foi utilizada para justificar a submissão de povos durante os colonialismos e a exploração de determinados corpos para a consolidação e manutenção do que chamaremos aqui, à luz de Lélia Gonzalez, de “capitalismo patriarcal-racista”, um sistema criador e mantenedor de uma racialização e sexualização do trabalho; criador e mantenedor de uma hierarquia dos tipos e valores de trabalho e de mão-de obra vinculadas aos corpos construídos como Outros com relação ao homem branco europeu. 

Considerando esse processo, não seria no mínimo paradoxal a reiteração desses lugares raciais (de Outro) para a afirmação identitária dos negros ao longo da história? Ocorre que, conforme Hall, a identidade se apresenta como uma “narrativização do eu”, que faz com que o processo de construção de identidade tenha um caráter discursivo e, então, nunca seja ajustado ou idêntico aos processos de sujeito que são investidos nas identidades que escolhemos para nós. Ou seja, nossas vivências não alcançam plenamente o que nossas construções narrativas dizem ser nossas identidades. Essas explicações se relacionam com o que Antônio Sergio Guimarães (2003) explica sobre a ideia de raças humanas no sentido sociológico.

Segundo o sociólogo, a ideia de raça é acionada por nós discursivamente como sendo as “origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue”. “Ou seja, as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que as ‘raças’ são efeitos de discursos; fazem parte desses discursos sobre origem”, afirma o autor. 

Ao surgir no Brasil, em 1978, o MNU (Movimento Negro Unificado) reintroduziu ou se apropriou da ideia de raça negra sob essa perspectiva discursiva, introduzindo nela significações positivas. “Começa-se a falar de antepassados, de ancestrais e os negros que não cultivam essa origem africana seriam alienados, pessoas que desconheceriam suas origens, que não saberiam seu valor, que viveriam o mito da democracia racial. Para o MNU, um negro, para ser cidadão, precisa, antes de tudo, reinventar sua raça”, escreve Guimarães.

O que o MNU fez no Brasil tem correspondência em ideais e anseios de consciência racial negra que também estiveram presentes em outros vários movimentos ao redor do mundo ao longo do século XX, como: o Pan-Africanismo, idealizado e disseminado no início dos anos 1900 por intelectuais e ativistas negros, como Sylvester Willians (1869-1911), Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) e Marcus Musiah Garvey (1887-1940); o movimento de “Negritude”, termo inaugurado em 1934 no jornal “O estudante negro”, criado por estudantes antilhanos e africanos, como o jovem Aimé Césaire, escritor e político martiniquenho; as lutas anticoloniais africanas pela independência de países colonizados, sendo a maioria de verve socialista, acirradas nas décadas de 1960 e 1970 e influenciadas pelo Pan-Africanismo; o Movimento da Consciência Negra (Black Consciousness Movement), criado pelo militante estudantil Steve Biko (1946-1977) durante o apartheid na África do Sul, e as reivindicações de poder ao povo negro e defesa de um “nacionalismo cultural (negro)” nos Estados Unidos em meio à luta pelos Direitos Civis na década de 1960 como resposta à segregação racial oficializada desde a abolição da escravatura no território. 

Tendências autobiográficas 

Entendo que a alcunha “negra” que diferentes artes, o cinema entre elas, receberam ao longo da história em diferentes países segue esse mesmo raciocínio: a apropriação discursiva e positiva da ideia de raça e vivência negras. Sendo que, conforme Hall, no caminho da afirmação identitária racial, a cultura diaspórica negra como discurso se apresenta como mais delineada ou fechada do que as próprias vivências relacionadas a essa cultura. Isso porque, como mencionado, essas vivências são mais heterogêneas e abrangentes do que os discursos conseguem dar conta. Nesse sentido, acho equivocado pensar em essências do que seria um fazer ou um olhar negro nas artes ou mesmo do que seria um cinema negro. 

A percepção de que pessoas que fazem parte de grupos minorizados passam por experiências específicas e ao mesmo tempo comuns de opressão parece ser um dos principais fatores a endossar os debates sobre os autorizados a falar ou representar determinados temas e corpos; o debate sobre a legitimidade de autoria considerando os lugares e experiências sociais de autoras e autores. Mais do que falar sobre a assertividade desse debate, interessa-me observar como a sub-representação-representatividade de pessoas minorizadas nas artes tem como mais um de seus efeitos a criação de obras feitas por realizadores desses grupos que exploram de forma muito evidente suas próprias vivências, experiências e subjetividades nas narrativas. 

No caso do cinema, isso não é algo inaugurado pelos minorizados, já que a classificação do chamado cinema de autor data da década de 1960. E, de maneira mais ampla, como escreve bell hooks (2013), “a política de exclusão essencialista como meio de afirmação da presença, da identidade, é uma prática cultural que não nasce somente dos grupos marginalizados [...] quando esses grupos de fato empregam o essencialismo como meio de dominação em contextos institucionais, eles estão, em geral, imitando paradigmas de afirmação da subjetividade que fazem mecanismo de controle nas estruturas de dominação”. 

Porém, é interessante observar como as vivências e subjetividades de autoras e autores minorizados têm sido exploradas como premissa estético-narrativa de suas obras para a materialização da representação-representatividade como expressão e construção de identidades e vivências historicamente subrepresentadas no sentido da representatividade. E, aqui, parece-me necessário observar também os aspectos um tanto limitantes dessa tendência. 

Para mim, é evidente, por exemplo, a contemporânea proliferação de filmes feitos por realizadores(as) negros(as) – e também por realizadores(as) LGBTs, vale dizer – que seguem os seguintes e mesmos padrões: 1) documentários clássicos, necessariamente com “cabeças falantes”, que destacam protagonismos, perfis e existências de pessoas pertencentes a grupos minorizados e subrepresentados; 2) filmes híbridos (entre ficção e documentário) que compilam e montam diferentes e esteticamente impactantes cenas e imagens de arquivo ou produzidas contemporaneamente; sobre essas cenas e imagens, é inserida uma narração em off nas vozes dos próprios realizadores falando textos, nem sempre esteticamente interessantes, sobre suas próprias subjetividades, marcadas pela opressão, discriminação, exclusão, privação ou superação vinculadas a suas experiências como corpos outricizados em um mundo “capitalismo patriarcal-racista” e heteronormativo. Vale dizer que o uso de imagens “precárias” nestas obras, feitas por câmeras cada vez mais portáteis, inclusive de celular, parece estar sendo feito sem uma real reflexão da composição narrativa dessa precariedade estética, de como ela agrega sentido, ou não, ao que está sendo dito ou ao que está querendo ser dito.

Ao se tornarem repetição e tendência, esses formatos podem evidenciar que a exploração comum de recursos entre esses realizadores são, entre outras coisas, reflexo da positiva facilitação de acesso a meios para a criação (filmagem, montagem e finalização) de filmes por artistas de determinados grupos sociais. Porém, junto aos debates e reivindicações por representação-representatividade, a tendência parece apresentar também desgastes e vícios estético-narrativos que raramente têm conseguido ser superados para filmes, de fato, singulares e inovadores artística, narrativa e discursivamente. Tenho ficado mesmo ressabiada com essa tendência de filmes que são feitos literalmente como diários de uma ou múltiplas subjetividades marcadas por opressões ou pela superação delas. 

 

Frame de NoirBLUE - Deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018)

 

Aqui, lembro-me rapidamente de algumas impressões sobre o interessante curta-metragem NoirBLUE - Deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018). Ana Pi é uma artista que admiro, mas que parece ter tido seu filme superestimado devido a sua potência estético-discursiva, imbuída pela dança e pela performance, para expor percepções decoloniais sobre pertença ancestral africana por ser negra. Considerando o que escrevi acima sobre a construção discursiva da racialidade e identidade negras, enxergo uma baixa complexidade narrativa em NoirBLUE quando a narração em off da diretora colocada sobre imagens captadas em sua passagem por diferentes países de África diz frases como: “eu venho de todos esses lugares [africanos]”, “eu me integro”. 

A dança de Ana Pi e das personagens que encontra em diferentes cenas permite pensar os gestos físicos como aquilo que fica e é compartilhado nas diásporas passadas e presentes, forçadas e voluntárias, feitas pelos negros ao redor do mundo. Porém, frases da narração como a as explicitadas acima parecem fixar e generalizar a fluidez desses corpos negros e dos próprios corpos africanos segundo ideações da diretora que remetem a discursos de positivação racial como aqueles criados há 100 anos pelos Pan-Africanistas. 

A sensação de pertença, comunhão e identificação com todos os muitíssimos povos de África narradas por Ana Pi no filme parece fazer mais sentido pensando nela como uma jovem realizadora negra brasileira e mineira radicada na França e na Europa, onde, devido à imigração como reflexo da colonialidade, a identificação com negros de diferentes nacionalidades, sobretudo negros africanos oriundos de ex-colônias francesas, ganha mais peso, um significado outro e específico. Pensando numa relação Brasil-afrobrasileiros e países africanos-africanos, e colocando os africanos como protagonistas dessa percepção, acho válido considerarmos que, para eles, que são de diferentes povos em África (povos, inclusive, que não têm exata comunhão entre si), nós afrobrasileiros somos tão americans quanto os negros estadunidenses, por exemplo; somos “Outros” e não simplesmente “quase africanos”. 

De fato, o relato de Ana Pi tem mais a ver com ela mesma (como o filme assume) do que com uma percepção coletiva dos negros brasileiros e do que com uma análise da americanidade e ocidentalidade da autora como opacidade perceptível para os africanos e para ela mesma. Nesse sentido, obviamente, respeito a subjetividade única de Ana Pi como artista e pessoa (só ela saberá e poderá dizer o que diferentes experiências suscitam nela mesma intimamente). 

Porém, a partir de seu filme, lanço a pergunta: percepção, reconhecimento e identificação (nos sentidos triviais desses termos) dos (afro)brasileiros com nossas origens e a heranças culturais africanas devido às diásporas forçadas podem ser o mesmo que quase se sentir pertencente à África e a todos os muitíssimos e diferentes povos africanos na contemporaneidade? Afinal, possivelmente temos em nosso afroamerican brazilian way tantas marcas indígenas quanto africanas já “ladinoamefricanizadas”. Não narrativizar isso cotidianamente ou por meio de expressividades artísticas diz muito sobre nós e sobre as (des)valorizações discursivas que fazemos de nossas origens em época das ideias de “futuro ancestral” e afrofuturismo incorporadas nas artes brasileiras. 

Com muitíssimo respeito ao filme de Ana Pi e percebendo suas reverberações em mim (uma outra percepção individual, portanto), quando fui/vou à África, sendo filha de nigeriano, me senti/sinto muito mais uma negra “ladino ameafricana” do que “só” uma afrobrasileira muito próxima da minha/nossa origem (exclusivamente?) africana. A pergunta final que me vem à cabeça é: por que para nós, negros brasileiros com preocupações políticas antirracistas e afirmativas, é, ainda hoje, mais sensível a reivindicação de nossa descendência africana, sendo que a África contemporânea já é uma transformação da África de onde saíram nossos descendentes escravizados, do que reivindicar nossa origem ladino amefricana, ou seja, necessariamente afroindígena? Será que nossa origem negra africana é mais atraente para ou facilmente assimilável quando parte de uma “obra artística pretensamente negra”? 

Aqui, lembro de uma passagem escrita por Paul Gilroy sobre o escritor negro estadunidense Richard Wright no livro “Atlântico negro: modernidade e dupla consciência”: “Talvez os artistas negros experimentem a comunidade por meio de um paradoxo especial [...] Ela os dota de um direito imaginativo de elaborar a consciência da adversidade racial ao mesmo tempo que os limita como artistas à exploração dessa adversidade”.

‘Tirania da subjetividade’ e comoditização das diferenças  

Voltando ao ponto específico da experiência e da subjetividade representada nas obras audiovisuais de autores pertencentes a grupos minorizados, lembro-me de bell hooks. Ao mesmo tempo que explica que a dinâmica da essencialização ou discursividade da experiência não é uma valoração que nasce dos grupos marginalizados, a autora afirma que mesmo que esses grupos se valham, de forma legítima, da experiência social e racial como uma “posição de privilégio” para percepções de certos temas e entendimentos de certos conceitos, a experiência não deve ser entendida como a “única, nem muitas vezes, a mais importante [forma] a partir da qual o conhecimento é possível”. 

Nesse sentido, a teórica propõe pensar a experiência como legitimidade de expressão do conhecimento sobre determinados temas e realidades a partir de uma analogia com a centralidade da farinha na receita de um pão: “de repente, a farinha se torna a coisa mais importante, embora sozinha ela não sirva para fazer o pão”, escreve no livro “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade”. 

As sub-representações das experiências dos negros parecem também justificar obras que evidenciam o que a professora e teórica de teatro Leda Maria Martins tem chamado de “tirania da subjetividade” – ou “tirania do eu”, numa adaptação ou tradução da jornalista e pesquisadora de comunicação Rosane Borges. Segundo Martins, a ideia consiste na necessidade e no desejo de falar de si e de suas experiências e vivências individuais vinculadas à diferença/identidade negra. “O teatro muitas vezes se transforma no lugar de construção da autoficção”, afirma. 

Segundo Martins, obviamente, também é necessário que nós sejamos construtores de nossas narrativas, mas “as nossas narrativas não são apenas de dor ou sofrimento. Isso talvez seja um assunto que muito nos atraia e com razão: são séculos e séculos de violência e opressão e, quando comparamos com outros, ainda temos um longo caminho de construção de nossa cidadania. Mas, no Brasil, nós não temos muita intimidade com isso de não nos colocarmos como exceção. Como se a humanidade se construísse e nós fôssemos a exceção. Não. Nós somos parte da humanidade e, sendo assim, as narrativas históricas que nos fundam vão muito além da nossa dor e do sofrimento. A própria dor e o próprio sofrimento muitas vezes se transformam em mercado”, diz a professora em bate-papo disponível em vídeo na internet. 

Comentando sobre a conceituação de Leda Maria Martins, Rosane Borges propõe as seguintes perguntas: “como construir uma pessoalidade que não se encerre no ‘eu’ [...] De que maneira revisitar os postulados do sujeito ocidental, sempre em ruínas, reelaborar outras perspectivas, considerando as vozes dos condenados da terra sem cairmos na miserabilidade do ‘eu’?”. 

Essas perspectivas críticas me fazem pensar justamente no paradoxo da afirmação da identidade a partir das diferenças (racial, social, de gênero etc.) historicamente construídas e vividas. Afinal, é preciso ressaltar que a afirmação de identidades raciais negras como positivas feitas por pessoas negras no capitalismo pode reforçar estereótipos e “essencialismos primitivistas” que a estratégia pareceria querer combater. A própria bell hooks tece análises sobre um nacionalismo racial negro nos Estados Unidos acrítico ao capitalismo e às complexidades e perversidades da “Outridade” em meio a esse sistema; um nacionalismo racial negro que pode novamente essencializar a negritude ao tratá-la como uma commodity; um nacionalismo que, ao circunscrever as formas (comerciais) de ser negro, também (de)limita performatividades dessa identidade.

“Quando a cultura predominante exige que o Outro seja representado como sinal de mudança política que está em andamento, de que o ‘sonho americano’ pode ser realmente inclusivo à diferença, isso é um convite para o ressurgimento de um nacionalismo cultural essencialista”, escreve a autora. E continua: “quando jovens reproduzem a retórica do nacionalismo negro dos anos 1960, quando usam tecidos kente, medalhões de ouro e cabelos com dreads […] eles expõem a maneira como a comodificação [tornar a cultura simbólica negra mercadoria] retira o significado e a integridade política desses símbolos, negando a possibilidade de que possam servir como catalisador para a ação política concreta [para além da representação stricto sensu, acrescentaríamos]. O poder desses símbolos de inflamar a consciência crítica é diluído quando estes são transformados em commodity” – as colocações dentro das chaves são minhas.

Nesse sentido, por vezes fico pensando o que as obras realizadas por autores negros sob a retórica de perspectivas ou olhares a partir da “experiência negra” e necessidades de novos imaginários negros está fazendo com a “recepção branca” que aprecia esses filmes, nacional e internacionalmente. Afinal, como diz novamente bell hooks, confinar os negros a serem testemunhas oculares das questões e anseios negros é uma das perversidades (talvez camuflada) do racismo. 

Fico pensando se, no fim, há um caráter antropológico e edificante no que se resume a um “consumo artístico” da realidade e narrativa dos Outricizados. Questiono-me se estamos criando imaginários sobre nós e ao mesmo tempo para os brancos, educando-os sobre como o mundo é para nós e, consequentemente, como o mundo deveria ser para todos nós. Pergunto-me se, sob essa complexidade de percepções, o “gesto de aparecer” realmente é tudo e faz, de fato, diferença nos regimes de visibilidade em termos de representação e recepção cinematográfica e em termos de transformações sociais referentes ao racismo e às desigualdades de raça, classe, gênero.

No último ano, pude acompanhar presencialmente alguns festivais europeus de cinema durante uma temporada morando na Espanha para cursar um Máster em Curadoria Cinematográfica na Eliás Querejeta Zine Escola como bolsista do Projeto Paradiso. Algumas percepções sobre as falas dos últimos diretores de arte dos festivais internacionais de cinema de San Sebastián, Viennale, Rotterdam e Berlim realmente me chocaram. Escutei coisas como “contemporaneamente, a África não produz um cinema de qualidade internacional ou para festivais internacionais de cinema de grande porte”, e que, considerando os debates de maior representatividade de mulheres e não brancos entre curadores e os realizadores de filmes selecionados, exibidos e premiados nesses festivais, políticas como as de cotas são inaceitáveis e aparentemente degradantes frente à perspectiva do merecimento.

Uma consideração do então diretor artístico da Berlinale (Festival Internacional de Cinema de Berlim) durante uma palestra em meio à minha participação da 10ª edição do Locarno Críticas Academy, na Suíça, foi das mais marcantes. Questionado por um jovem cineasta indiano (salvo engano) sobre a ausência ou baixa presença de filmes do Oriente Médio no Festival de Berlim, o diretor disse algo como: “Não entendo porque alguns cineastas dessas localidades fazem questão de mostrar seus filmes primeiro em festivais europeus. O ideal seria primeiro mostrar e circular seu filme para o seu povo, se esforçar para isso. Eu não posso trair a mim mesmo e à minha posição nessa resposta. Vocês devem pensar sobre essas coisas”. 

Escutando essas coisas e acompanhando as programações e palestras sobre os festivais nesse período de estudos, cheguei a algumas conclusões muito básicas e incipientes. Primeiro que, aparentemente, os festivais europeus polarizam filmes de temáticas políticas e sociais, ou os chamados filmes militantes, como aqueles a comporem mostras latino-americanas ou mesmo janelas de exibição que contemplam filmes que não são de países centrais da Europa ou dos Estados Unidos, da Coreia do Sul, Japão e China (asiáticos que consagraram seus cânones e ganharam respeito na história do cinema entendida como universal). 

De maneira geral, estes países parecem ser os que ainda têm o privilégio de serem associados a filmes de autor, com temáticas mais existencialistas ou sem marca evidentemente sócio-política. Ou seja, nós, do Sul do mundo, fomos enquadrados e confinados. Frente a isso, parece-me que jogamos o jogo, respeitamos os perfis de filmes que são exibidos nos festivais e, mais especificamente, os perfis dos filmes sobre nós que esses festivais parecem querer selecionar, programar e ver.

Minha percepção é de que possivelmente os filmes escolhidos ou se coadunam com visões e morais europeias a partir da visão das elites brancas latino-americanas, por exemplo, sobre suas próprias realidades, ou mostram aos europeus o olhar latino-americano que eles querem ver endossado por nós, e não o olhar complexo e sob outras perspectivas morais e diversas de nós sobre nós mesmos.

Sendo assim, penso ser necessária uma produção cinematográfica “que não busque aproximar-se da técnica, da estética ou da narrativa dominante para legitimar-se enquanto produção visual” (SANTOS e SANTOS, 2009). Afinal, do contrário, as diversas culturas e identidades sempre serão apenas incorporadas à cultura cinematográfica e audiovisual por meio de um “‘ventriloquismo’, que autoriza a voz dos subalternos apenas pelo veículo e falas dominantes” (SANTOS e SANTOS, 2009).

Cinema negro puro ou genuíno

Frente a isso, é preciso ressalvar e reconhecer a complexidade dinâmica dos hibridimos na cultura e nas artes e colocar sob suspeita a crença numa pureza dos elementos constituidores das culturas não hegemônicas. Como escreveu o incontornável crítico e pesquisador de cinema brasileiro Paulo Emílio Salles Gomes, o fato de historicamente o cinema nacional ter tentado copiar as indústrias cinematográficas do norte do mundo criou em si um jeito e uma estética nossa de fazer cinema. A cópia do cinema hegemônico tornou-se em si algo novo e nosso, posto que a fazemos necessariamente a partir de um lugar de subdesenvolvimento. 

O teórico espano-colombiano Jesus Martín-Barbero (1997; 2000), influenciado pelo teórico marxista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), explica num âmbito mais conceitual essa dinâmica. Segundo Martín-Barbero, a cultural hegemônica tem a capacidade de materializar e expressar o modo de viver e pensar das classes subalternas, as formas como elas sobrevivem e as estratégias através das quais filtram, reorganizam e fundem o que vem das perspectivas dominantes com o que vem de suas memórias históricas. Isso significa dizer que “nem toda assimilação do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não é de resistência, e […] nem tudo que vem ‘de cima’ são valores da classe dominante, pois há coisas que vindo de lá respondem a outras lógicas que não são as da dominação”. Lembremos, inclusive, que, ao longo da história, as culturas dominantes fagocitaram elementos das culturas dominadas que passaram a ter suas origens invisibilizadas. 

Ao invés dessas apostas inovadoras e debates complexos, o que tenho visto são duas coisas estarrecedoras e aparentemente ingênuas: a vontade da construção de uma história do cinema negro no Brasil praticamente independente à história do cinema brasileiro, que é, sim, em sua maior parte, a história da produção de artistas homens e brancos de uma elite intelectual do racista Brasil; uma vontade que coloca os realizadores negros de cinema como inaugurais ou excepcionais quanto a experimentações que dialogam com outras produções de seus períodos e que, ao meu ver, não coloca a própria produção contemporânea dos negros no cinema em perspectiva histórica. 

A esse respeito, por questão de espaço, recomendo que leitores escutem as considerações que fiz em minha participação na mesa “Investigar a matéria dos cinemas negros”, parte da primeira edição do Seminário Práticas Críticas do Pensamento Negro, realizado por esta Plataforma INDETERMINAÇÕES e disponível neste link em seu canal no YouTube.

[Este texto continua...]

Referências 

Artigos

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Links

Negro tem 2,6 vezes mais chances de ser assassinado no Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-08/risco-de-negro-ser-assassinado-e-26-vezes-superior 

População negra é a mais afetada pela insegurança alimentar: https://drauziovarella.uol.com.br/alimentacao/populacao-negra-e-a-mais-afetada-pela-inseguranca-alimentar/

Masp usa capa decolonial, mas veta fotos do MST e trabalho de curadora indígena: https://theintercept.com/2022/05/17/masp-capa-decolonial-veta-fotos-mst-trabalho-curadora-indigena/

Encontro 1: LEDA MARTINS - ESTUDOS EM TEATRO NEGRO: https://www.youtube.com/watch?v=cmiemy5gJkI

Tiranias da subjetividade, alteridade radical!: https://www.youtube.com/watch?v=xzg6rsg229s

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