Parte I - Do filme ao feed | Crítica de Medida Provisória (2022), de Lázaro Ramos

por Lorenna Rocha e Juliano Gomes | Wed May 11 2022 17:34:30 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Juliano Gomes: Então, acho que pra abrir uma conversa sobre o filme Medida Provisória, dirigido pelo Lázaro Ramos, baseado na peça Namíbia, não! de Aldri Anunciação, podemos pensar primeiro nesse processo de origem do projeto. A peça é da virada dos anos 2000 para os 2010. O momento histórico do Brasil era radicalmente outro, especialmente a relação com o Estado. Nessa época, a sensação no Brasil é que tava “tudo garantido”, sabe? Portanto, a questão que o texto coloca, sobre o pertencimento negro, sobre a relação dos negros diaspóricos com a África, e toda a problemática desta relação, ela tem como pano de fundo isso, essa noção de estabilidade. É uma questão super pertinente e interessante, e sinto que está somente no primeiro terço do filme - que é talvez a parte onde ele consegue materializar melhor suas ideias. Portanto, onze anos depois, a coisa muda. O Estado brasileiro mudou de ponta a cabeça, temos Bolsonaro, temos redes sociais, está tudo distinto ao redor. Nas duas sessões em que vi o filme, em cinemas diferentes aqui no Rio de Janeiro, tivemos palmas e gritos de “Fora Bolsonaro”. Medida Provisória se tornou um acontecimento social. Não sei de qual proporção, mas se tornou. Essa década entre uma coisa e outra me parece sugerir algumas hipóteses sobre o que o filme é como obra e como fenômeno coletivo. Isso te diz alguma coisa? Lorenna Rocha: A questão do pertencimento negro e nacional, alinhada à discussão sobre políticas estatais autoritárias e higienistas, enquanto mote fílmico, parece ser uma resposta a esse Brasil em que, nos últimos dez anos, tudo mudou. Esse primeiro terço a que você se refere, se situa em um cenário muito específico de “futuro” que, ao não datar o tempo, se mostra interessado em dialogar com várias temporalidades, sobretudo num diálogo constante com o presente. Esse espaço-tempo acumula uma série de signos muito legíveis, que abrem para conjuntos variados de significações: personagens principais que ocupam cargos não-subalternizados (destacando, ainda, a importância das políticas de ações afirmativas); uma mulher negra ex-escravizada, que deveria ser reparada monetariamente pelo estado brasileiro (e a sua impossibilidade de acessar o capital aparece como disparador da narrativa); o retorno à África de maneira forçada como política de estado (que lança uma discussão sobre identidade nacional e sobre coletividade negra em processo de reafirmação de sua identidade diaspórica). Acho que esses três elementos condensam (e se chocam) como uma espécie de quebra de expectativa em relação ao próprio Brasil, e a como ele era na história recente do país. De dentro dessa desesperança, o filme junta todos os elementos para reafirmar um lugar nessa terra “que também é nossa”, como uma espécie de retomada do território, do direito de viver aqui. Me lembrou muito o movimento que Mariguella (Wagner Moura, 2018) busca fazer, reforçando a figura do guerrilheiro urbano como um grande nacionalista através de uma reaproximação dos signos nacionais. A cena final do filme de Wagner Moura, onde os personagens estão cantando o hino nacional brasileiro, pode ser aproximada com o momento em que Antonio (Alfred Enoch) grita na varanda do apartamento dizendo que é brasileiro e que vai resistir. Nesse sentido, talvez seja por isso que a energia “Fora Bolsonaro” se manifeste dentro das salas de cinema… Juliano: Me explica melhor isso? Você está falando de uma espécie de nacionalismo crítico, no sentido de buscar retomar signos e imagens de Brasil, de tomar das mãos da extrema direita todo esse sentido e iconografia? Porque de fato, do “outro lado”, nós temos um antirracismo que busca renegar a ideia de pertencimento nacional, que a ideia de Brasil, de nação, é uma ideia “violenta” e tudo mais, especialmente quando refletimos pensando sobre os povos originários daqui. Enfim, me diz aí o que queres dizer, não sei se catei… Lorenna: Acho que tem dois movimentos aqui, o que faz do filme uma confusão em seus termos ideológicos: sim, acredito que há um desejo de retomada dos signos nacionais e de “integração racial” entre brancos e negros, onde a democracia aparece como horizonte político. Isso está nos diálogos, nas “sutilezas” de montagem e na defesa articulada pelos personagens principais diante do problema central apresentado pelo filme: o retorno à África como imposição estatal. Existe esse desejo de reafirmação, que para mim é uma resposta direta ao Brasil dos últimos dez anos, de reascensão do fascismo, etc. Isso é um ponto, certo? O outro, que acho que é o problema mais interessante do filme, é que, entre os movimentos negros brasileiros, historicamente inclusive, há um discurso forte de “retorno às origens”, de “retomar os signos de África”, de voltar “à Terra Mãe”. Claro que a contraposição se estabelece porque isso se dá naquele universo de forma autoritária. OK. Mas, deslocando um pouco os limites discursivos, o que se apresenta é uma interessante interrogação ao discurso afrocêntrico, que tem seus tons essencialistas. Dentro do filme, fica uma espécie de dubiedade, de afirmação e negação ao mesmo tempo, que é pouco trabalhada enquanto elemento narrativo, mas que tá lá, e pode ter diversas interpretações. O que quero dizer é que parece que há uma mensagem também para esse segmento que, como você diz, é contra a ideia de nação. Não por acaso podemos chamar para a conversa o República (Grace Passô, 2020). O que você acha? Juliano: Putz, acho que vou andar pra trás, retomar coisas interessantes que você falou. Porque me parece que o problema geral do filme é que ele não leva as ideias muito à frente. Por exemplo, se o ponto dele fosse realmente o que parece ser, a caminhada no final tinha que ter uns brancos também, certo? Lorenna: Acho que você deu um salto aqui, porque esse tópico-problema precisa ser desenhado em seu coração, né? Que é aquela montagem paralela do personagem do André (Seu Jorge) e do Santiago Blanco (Pablo Sanábio)... Num é? Juliano: Isso. Este é o gesto central do filme, porque de fato é a única vez onde uma construção de sentido se dá intensamente entre planos, é um gesto de montagem. Acho que temos o nosso “travelling de Kapò” do cinema contemporâneo brasileiro, um gesto cinematográfico que coloca ou não um limite moral: um paralelo via falso raccord de duas mortes, um homem negro morto a tiros pela polícia, se rebelando, comparado explicitamente com um homem branco - que é um personagem mal desenvolvido no filme - sendo morto dentro do quilombo contemporâneo (o “afrobunker”) sob a suspeita de ser um infiltrado. Essa comparação é onde, de fato, o filme faz um gesto. O filme se mostra. Penso que se o diretor fosse branco, ia ter tuitaço em repúdio, web revoltas. Mas ok, o Lázaro se arriscou, e colocou uma ideia ali, isso é ótimo. Porém, ela parece não combinar com o todo do filme, sinto uma indecisão. Medida Provisória parece propor uma espécie de integracionismo que não consigo distinguir bem. Só que ele quer conciliar isso com características de um certo antirracismo das redes sociais, ele tem esse caráter de tentar dialogar com quem nunca ouviu falar em Djamila Ribeiro. Isso é interessante por um lado. É uma tentativa de “cinema popular” tratando de temas hiper complexos. Até aí, acho maravilhoso. Mas parece que o filme se embola com isso e não consegue levar as questões à frente. E, de certa forma, é um problema da perspectiva da integração. É como se o filme tivesse inúmeros compromissos a cumprir. Dá um pouco a sensação de ser de fato o filme feito pelo “único negro com oportunidades no Brasil”, sabe? Aí tem que levar todo mundo. Aí a cada cinco minutos tem que botar uns signos negros pra que nosso coração dê um like interno: música do Baco Exu do Blues, da Elza Soares, foto da Ruth de Souza, Moa do Catendê, música da Liniker, Emicida, e aí vamos de like em like. Tem algo da lógica de feed na narrativa. Do filme ao feed. Me afastei um pouco do que você falou. Mas é importante marcar o gesto do falso raccord entre as mortes dos personagens do Seu Jorge e do Pablo Sanábio, sim, acho que tá aí uma espécie de coração do filme. Lorenna: Essa ideia de integração racial é um problema grande do filme e que vai na contramão do gesto final, aquele que você mencionou, onde pessoas negras caminham ao som de O que se cala, música da Elza Soares. E de todo o filme, na real, né? Porque, retomando um termo que gosto muito, esse verniz, essa negrura que aparece na música, na roupa, nas personalidades pretas, se dissipa quando vejo uma montagem dessa. Em sua estrutura, seu respiro, seu coração, o filme atende a um viés ideológico que é o oposto do “aquilombamento” desejado pelo filme. Quer dizer, nem acho que ele deseja “aquilombamento”, acho que ele entrega um gosto de união, de “vamos dar todos as mãos aqui?”. E, tudo bem, isso pode ser uma posição política. Mas, porque estamos vibrando com essa ideia de “igualdade”? Com essa ideia torta de democracia? Vibramos pelo projeto político ou pelos discursos que se estruturam de forma semelhante ao que que encontramos quando navegamos em nossos celulares? Há vigor e ação política aqui por estarmos escutando uma música que curtimos na sala do cinema? A sensação que tenho é que o longa nos cativa apostando em nossas próprias projeções, nossas predileções. Por mais que haja um investimento no processo de identificação do público em relação ao que se vê na tela, não acho que isso saia de dentro de um circuito narcisista. Tá, é massa escutar o Baco, mas e aí? Dou like e isso vai para onde? Enquanto coletivo, ideia, proposição estamos olhando atentamente para o que se expressa no filme? Que tipo de projeto de mundo ele vende? Queria retomar duas coisas que você falou ali em cima, acho que fugi um pouco: essa tuitização dos debates contaminou o filme, né? Frases prontas, trocar arma por livro, dar shade nos brancos no meio das cenas… Também me senti num feed. E isso virou, para algumas pessoas, uma ferramenta de defesa do Medida Provisória, em seu desejo aparente de querer “passar uma mensagem política de modo compreensível”. E que muitos desses jogos de “tiração de onda” com os brancos seria uma forma de incomodá-los, nesse lugar de plateia. Não que isso se mensure, mas acho que o incômodo perde espaço para esse discurso integralista. Essa ideia de “mandar uma mensagem pelo filme” se associa diretamente com o que você falou fazer um “cinema popular”, não apenas por sua postura comunicativa, mas pela sua linguagem (e a aposta no comportamento das redes sociais também parece vir daqui). Só que aí o longa não se decide em sua postura. Uma hora ele quer pegar o público com um personagem como o do Seu Jorge e depois quer fazer um cinema educado/classe média/do feed/da militância. Tem um pouco de desobediência e obediência fílmica que faz o filme ser um impasse. E isso só se reforça quando ele não se demora nas suas ideias ou não se posiciona em relação aos discursos ideológicos em que passeia. Um monte de coisa aberta, sabe? Juliano: Não acho que as pessoas vibrem com a ideia de igualdade com esse filme. Não tenho certeza. O assisti em dois cinemas, na Zona Sul do Rio. Em ambos, plateia majoritariamente branca. As pessoas aplaudiram. Acho que ninguém leva um incômodo real pra casa com o filme, porque ele funciona por alívios não só cômicos como semânticos. A narrativa tem ambiguidades como você disse, mas quase não tem sutilezas. Ela possui esse desejo de ser uma peça de letramento racial. Quando os personagens brancos vão comer ou beber coisas é sempre preto ou escuro (close no café, close no sorvete de chocolate). O filme tem muito medo de que algumas coisas não sejam entendidas. Que é uma coisa dessa postura educativa e uma coisa das redes sociais, de dar as ideias na boquinha, não confiar num certo potencial subjetivo do espectador. Mas isso que você falou tem realmente muitos lados. Existe uma tendência hoje, no neoliberalismo avançado, de desmaterialização dos objetos artísticos ou um certo descentramento da matéria artística. Por exemplo, o centro do trabalho da Anitta não é exatamente as músicas do álbum. As faixas compõem com signos de outros tipos: as redes sociais, as entrevistas, os produtos licenciados. Nenhum artista se faz hoje produzindo arte, só fazendo disco, lançando livro. O que era acessório, o que apoiava a produção artística, agora é central, o jogo virou. Então, é isso, o filme vira uma espécie de peça de divulgação de si mesmo. Ele já é a encenação da reação a si mesmo. Ele materializa o que deseja ser. Ele não faz aquilo acontecer, por isso é tão discursivo. E por isso o raccord entre as duas mortes é tão forte. Porque ali não é discursivo, é material, é um gesto. Num ambiente onde tudo é dito, tudo é discursivo, quando há um gesto, ele grita. Porque a montagem do filme é super apressada. Isso é uma fragilidade difícil de superar ao assistir. O filme não permite tempos dramáticos, tempo das emoções se formarem nos personagens e na gente, é tudo súbito. É tudo meio “do nada”. E isso é um pouco o mapa emocional da cognição dos feeds, que está nos formando hoje. Aleatoriedade e estímulos superficiais. Não há processo ou trajetória. Sinto isso em algumas séries. Porque esses materiais estão brigando por pessoas que olham o celular de um em um minuto. Então, é rapidez e redundância, o tempo todo. Isso muda tudo. Porém, como produto parece que deu certo. Tá com mais de 300 mil espectadores em cerca de um mês. Como mercadoria, o filme é um sucesso em todos os sentidos. Porém, há uns duzentos anos, nós éramos mercadorias, né? A ideia de mercadoria tem parentesco íntimo com a escravidão. E esse filme me parece muito afinado com uma ideia um pouco acrítica de capitalismo negro, black money, negros no topo e toda essa coisa. O antirracismo popular da internet no Brasil tem ganhado estas tintas, não acha? Lorenna: Totalmente! Acho curioso, porque é aquela ideia dos “mais vendidos”, que a Jota Mombaça ensaia em A plantação cognitiva, né? Sabe, a primeira coisa que me chamou atenção no filme foi esse signo da impossibilidade de uma ex-escravizada entrar num banco. E como a ideia de reparação no filme está associada à posse, à ocupação de certos espaços, ao poder de aquisição. Que se combina com a ideia de “progresso racial”. Como se a dívida (racial) fosse pagável, o gesto dramático que dá pontapé ao filme é uma combinação na crença em um neoliberalismo que parece se manifestar de forma “menos agressiva” porque agora estaria “mais preto”. E aí, no nervo do negócio, um discurso antiestatal aparece na narrativa, né? É contra o estado o tempo todo. Na sua forma, há um investimento imagético em símbolos, fotografias, presenças pretas da história do país, mas quando pode investir numa retomada histórica dos gestos de resistência que aconteceram nessas terras - os quilombos, por exemplo -, o que se tem é um “novo nome”, a denominação “afrobunker”. Essa aposta numa nova roupagem também é totalmente pró-neoliberalismo ou pró-capitalismo em seus modos de operação mais íntimos. O que é doido, porque o impasse do filme se apresenta de novo: “não era você que tava me dizendo agorinha que temos que estabelecer laços de comunidade, mona?”. Convoca-se o passado o tempo inteiro, mas deseja-se muito a ideia de novidade. Isso também é um pouco reverberação da linguagem das redes sociais no filme. É muita “lacração” e pouco tempo de respirar com as imagens e os discursos que estão sendo postos em tela. Leia a Parte II

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