Instaurar a dúvida

por Lorenna Rocha | Tue Jul 05 2022 17:00:25 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Não esqueço desse dia: sentada na cama, com o celular nas mãos, recebi um e-mail do Janela Internacional de Cinema do Recife. Senti que aquilo era algo de muita importância: estava entre as participantes do Janela Crítica 2018. Vibrei bastante! Achava que era a coisa mais foda que poderia conseguir. Hoje, entendo que essa emoção toda não era apenas sobre a vaga. A adesão no programa de formação de jovens críticos, na real, parecia uma parada meio inalcançável, sabe? Explico: licencianda em História, super envolvida com o teatro em Recife, não parecia alguém com o perfil para esse ambiente cinéfilo. Não era necessariamente a supervalorização do festival, ou um encantamento por ele, que me fazia achar aquilo tudo meio impressionante. Apesar de ser espectadora, e perceber a relação singular que o festival sempre teve com o Cinema São Luiz, até então não tinha dimensão do que “significava” o Janela para a cidade. Tampouco dentro do circuito cinematográfico independente. No entanto, não quero insistir nessa sensação de não-pertencimento. Por mais que reconheça que ela perpassa boa parte de nós, jovens pretes du cinéma, sinalizá-la aqui é apontar para uma outra coisa: acredito que esse sentimento tenha me feito entrar numa busca particular quase incansável, uma jornada inacabada, um desejo de estar mais perto da linguagem do cinema. Sem romantizar. Afinal, isso é sobre uma cobrança, a dificuldade de errar, o desejo excessivo pelo saber e o dever de “dominar a técnica”. Mas, foi justamente nesse caminho tortuoso e de muita autocobrança que encontrei a crítica, as tensões e os debates do campo, e as implicações do que é ser uma gata preta nesse rolê.

Talvez, minha história com o cinema tenha começado quando fui assistir Dois Filhos de Francisco (Breno Silveira, 2005), no Cinema São Luiz, com a minha avó, Dona Dôra. Ou na disciplina Crítica Cultural, com César Castanha e Ângela Pryston. Foi em Jornalismo, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em mais uma dessas escapadas da grade curricular do curso de História, que conheci bell hooks, Lucrecia Martel, Surto & Deslumbramento, Leona Vingativa, li pela milésima vez Walter Benjamin e escrevi um artigo sobre cinema pernambucano (rememorei enquanto estava fazendo este texto!!!). Era 2017.

No ano seguinte, fui incentivada por César a participar do Janela Crítica. Peguei o texto de La Niña Santa (Lucrecia Martel, 2005), que havia feito para um exercício valendo nota, e reduzi-lo em 2.000 caracteres. Como vocês já sabem, rolou. Juliano Gomes era o nosso mentor e, das seis integrantes do programa, quatro eram negras. É curioso como, por muito tempo, achava que as discussões raciais não haviam chegado tão rápido para mim quando se tratava de cinema. Não que elas tivessem chegado facilmente antes, afinal, foi só na Universidade, e depois de conhecer Abdias Nascimento e o Teatro Experimental do Negro (TEN), Frantz Fanon, Aimé Cesaire e Assata Shakur, que me deparei frontalmente com a questão racial. Na verdade, olhando em retrospectiva, percebo que essa configuração (de ter bastante gente preta no Janela Crítica) havia me chamado atenção na época. Isso talvez fosse conversa entre mim e William Oliveira, no ônibus, na volta das sessões. 

 

La Niña Santa (Lucrecia Martel, 2004)

 

Cinema, teatro, crítica

Foram nessas trocas miúdas que entendi que aquele Janela de Cinema estava sendo um tanto diferente dos anos anteriores. Não sabia, por exemplo, que isso poderia ser efeito das discussões travadas nacionalmente sobre representação-representatividade, do pós-Brasília de 2017. Mas, fato é que, quem estava exibindo filmes lá era Vinicius Silva (Quantos Eram Pra Tá? e Liberdade, com Pedro Nishi), Bruno Ribeiro (BR3), Dandara de Morais (Bup), Ana Pi (NoirBlue - Deslocamentos de uma dança), André Novais Oliveira (Temporada), Leon Reis (Cartuchos de Super Nintendo em Anéis de Saturno), e, “de maneira bem natural”, foi com uma parte da galera preta presente que me agrupei por ali. Sessões enérgicas para os títulos assinados por pessoas negras. Debates acalorados para os filmes realizados por pessoas brancas com representações negras que flertassem com estereótipos. No ano anterior, havia acontecido no Janela a mostra dedicada ao L.A Rebellion, da qual não vi nenhum filme, mas foi justamente um texto sobre ela, publicado no Janela Crítica 2017, que escolhi para ser debatido durante um dos exercícios propostos por Juliano. É, acho que a questão racial sempre esteve presente para mim, mas de maneira um tanto inconsciente. 

Um tempo antes (ou depois ou ao mesmo tempo), fui aluna de um curso de crítica teatral com Beth Néspoli, durante a Mostra Usina Teatral 2018 (Sesc Pernambuco). A conexão entre cinema, teatro e crítica foi estabelecida antes mesmo que eu pudesse dar conta. A aproximação entre o Janela Crítica e a atividade do Sesc não se dá apenas pela simultaneidade do trabalho com essas duas linguagens (o cinema e o teatro) através do exercício crítico. Mais do que isso: essas ações formativas são, de fato, o ponto de partida da minha jornada profissional. Foi no curso da Beth Néspoli que conheci Bruno Siqueira, um dos fundadores e crítico da Quarta Parede, revista dedicada às artes da cena. Na época, publiquei dois textos de espetáculos assistidos durante o Usina Teatral, depois escrevi sobre a peça Preto (fiquei impressionada com Grace Passô, com quem havia esbarrado, em Praça Paris [Lúcia Murat, 2017] e Temporada [André Novais de Oliveira, 2018], pouco tempo antes). Logo em seguida, fui chamada para integrar o corpo editorial da Quarta Parede, onde estou até hoje, como crítica e editora. Já no Janela, conheci Letícia Batista, que fez a ponte entre mim e Bruno Galindo em 2019, quando ele estava abrindo seu blog, até então pessoal, o Sessão Aberta, para que outras pessoas negras pudessem escrever seus textos. Lá, republiquei uma crítica que fiz durante esse festival a partir de Quantos Eram Para Tá? (Vinícius Silva, 2018), e daí se estabeleceu mais uma relação profissional. 

Se, por um lado, essas duas experiências, mediadas por projetos formativos, proporcionaram o encontro com veículos (Quarta Parede e Sessão Aberta) que me possibilitaram exercer a crítica de cinema e de teatro, por outro, me chama mais atenção como ambas formações marcam algum tipo de identidade, de “valores” que são bem caros para minha prática profissional: a coletividade como modo de construção e estruturação de trabalho; a partilha do conhecimento como fundamento para a formação intelectual; e, por fim, no âmbito da crítica, a edição textual como instrumento de diálogo, atenção e generosidade. Claro que essas coisas não se constituíram de forma apaziguada, mas percebo como os espaços formativos - e talvez tenha um crédito aí para a Licenciatura em História - marcam significativamente tudo que faço e fiz. Isso tem ressonância até mesmo na construção da INDETERMINAÇÕES e do camarescura.

 

Quantos Eram Pra Tá? (Vinicius Silva, 2018)

 

Dançar, dançando

Em 2019, já no Sessão Aberta, e bem interessada em pegar umas sessões sem pagar ingresso (rs), fiz a cobertura do Janela de Cinema. Entre ir para a Universidade, ver as sessões, escrever e ainda fazer aulas de teatro, não lembro muito bem como senti o ambiente naquele ano. Mas, a forma como circulei pelo Janela e o modo como estabeleci relação com o festival entraram em evidente contraste quando, em dezembro do mesmo ano, fui selecionada para o Talent Press Rio, e fiz a cobertura crítica do Festival do Rio, acompanhada pela mentoria de Pedro Butcher, Kênia Freitas e Victor Guimarães. Foi um choque. Não bastasse estar viajando sozinha pela primeira vez, tive que lidar com outra cidade e com um festival muito maior, em muitos aspectos, sobretudo o econômico. Tudo era muito novo. Não conhecia meus mentores - não tinha a menor noção do “tamanho”, digamos assim, de suas trajetórias profissionais e de quais eram suas relações com o campo cinematográfico -, não sabia até mesmo quem era Adriano Garrett (um dos participantes do programa, que se tornaria um importante parceiro de trabalho), o que aponta meu desconhecimento sobre o Cine Festivais. Literalmente, como disse Bernardo Oliveira (inclusive, o conheci no Talent!), num texto que também compõem esta publicação, fui “dançar dançando”

Durante o Festival do Rio, depois de uma crítica publicada por Bruno Galindo sobre o filme Intervenção (Caio Cobra, 2019), tivemos que lidar com uma situação de censura - e, no limite, de racismo institucional. Mais uma vez, estava em um ambiente em plena mudança. Era a primeira vez que havia uma quantidade significativa de jovens negros nesse programa de formação (éramos Bruno, Taiani Mendes, Chissana Magalhães e eu) e a presença desses corpos - e seus pensamentos críticos - no espaço pareceram, para alguns, “um espanto”. A crítica publicada por Galindo foi numa linha de confronto à ideologia pró-UPPs no Rio de Janeiro, além de ter sido bem enfática aos problemas estéticos do filme. Isso produziu duas coisas: por alguns motivos externos (e, em algum sentido, até maiores que o festival), o texto foi retirado do site e, com essa situação, todos os outros produzidos durante o Talent Press Rio, que ficavam no próprio endereço eletrônico do Festival do Rio, foram transferidos para um WordPress. O desânimo tomou conta de quase todos que estavam presentes e a forma de resposta mais rápida que conseguimos fazer foi uma carta aberta, assinada coletivamente por todas(os) as(os) integrantes do programa (além das citadas acima, estava Racquel Morais) e parte dos mentores. Finalizamos o processo de forma totalmente não apaziguada e as reverberações desse evento, para mim, só vieram bem depois. A novidade de tudo aquilo me impedia de ter reflexões mais densas sobre o que estava acontecendo. Mas, a sensação que tive era que estava tendo noção, pelo menos um pouco mais, da cadeia de cinema e audiovisual e esbarrando em algumas tensões mais explícitas, talvez, do que é ser uma pessoa negra nesse ambiente. 

 

Léa Garcia em O Emperador Jones (1953) - Ipeafro/Itaú Cultural

 

A pesquisa teatral intervindo na pesquisa cinematográfica

Para 2020, havia programado uma viagem para São Paulo pelo Quarta Parede, junto a Bruno Siqueira, para realizarmos a cobertura da MITsp. O que não imaginava é que, antes disso, iria para a Mostra Tiradentes. Mas, primeiro, preciso retomar algumas questões em relação à História e ao Teatro. Durante a graduação, tive certa dificuldade em encontrar meu tema de pesquisa para o Trabalho de Conclusão de Curso. Havia estagiado com gestão documental, mediação cultural e em escolas públicas, áreas que poderiam se tornar matéria de investigação, mas era o campo da arte que sempre me enchia os olhos. Além disso, pagar disciplinas de outros departamentos, como Antropologia, Cinema, Teatro, Ciências Sociais, era algo que fazia com certa frequência. Dando muitas voltas no Campus da UFPE, decidi marcar uma reunião com a professora Luiza Nascimento dos Reis, que veio a ser minha orientadora. Falei que fazia teatro e ela me perguntou se eu conhecia Abdias Nascimento e o TEN. Acho que isso era 2018 ou 2019. E a resposta foi um belo não.

Entrei numa saga para recolher o máximo de publicações do Abdias e do TEN. Drama Para Negro, Prólogo Para Brancos me fez acessar o texto dramático Sortilégio, escrito por Nascimento, na década de 1960. Por conta dessa dramaturgia, li A Cena em Sombras, de Leda Maria Martins. Li Soraya Martins, Evani Tavares Lima, Petrônio Domingues, Guilherme Diniz, Christine Douxami, Miriam Garcia Mendes, Cristiane Sobral, Elisa Larkin Nascimento. Bruno Siqueira informou sobre uma edição especial da Revista Dionysos, de 1985, sobre o TEN, que, para nossa sorte, tinha um exemplar na biblioteca do Centro de Artes e Comunicação (CAC). Nessa publicação, tive acesso a alguns depoimentos de Léa Garcia, Ruth de Souza e Haroldo Costa sobre as suas experiências no grupo teatral negro da primeira metade do século XX. Li O griot e as muralhas, autobiografia de Abdias. Bom, minha escrita do TCC foi bem tortuosa, cheia de idas e vindas, com muitas distrações no meio. Beeeeem espaçada. Mas, a leitura sempre esteve comigo e as interrupções durante o processo, na verdade, foram cruciais para deslocar minha pesquisa. 

Em um desses momentos da orientação, acredito que durante uma reunião do Afrika’70 - Grupo de Estudos da África Contemporânea, organizado por Luiza, fui questionada por ela sobre a centralidade do discurso do TEN na figura de Abdias e de como o “patrono” organizou suas memórias e produziu um discurso muito bem articulado sobre si e sobre o TEN. E, como as pesquisas, em maior ou menor grau, aderiram a isso. Foi uma virada de chave. Depois de muita ruminância, uma pergunta surgiu a partir dessa provocação: e se eu tentasse construir narrativas historiográficas sobre o TEN a partir de outros agentes, sobretudo, as mulheres integrantes do grupo? Foi daí que comecei a investigação sobre as trajetórias de Ruth de Souza, Léa Garcia e Maria Nascimento no Teatro Experimental do Negro. Esse ciclo terminaria apenas em julho de 2021, com a conclusão da graduação.

Pode parecer um desvio temático falar sobre essas questões, mas acredito que elas incidam diretamente sobre as minhas pesquisas acerca do cinema negro e brasileiro (ensaiei um pouco acerca disso na carta para Juliano Gomes que publiquei na Verberenas) e no investimento em aproximar história, historiografia e cinema. Bom, isso apareceria como evidência um tanto depois. Mas, com toda certeza, isso é resquício desse percurso anterior. Sem contar que foi, já no final da escrita do meu TCC, que me reencontrei com a História, principalmente com os estudos historiográficos. Isso também impactou nas produções e atividades, por exemplo, da INDETERMINAÇÕES: nosso seminário, Práticas Críticas do Pensamento Negro, deu uma atenção especial ao tema e às questões metodológicas do fazer crítico e da pesquisa de cinema. Retomar esse momento também é demarcar que esse pensamento cinematográfico em construção, em eterna busca, sempre esteve imbricado à prática da crítica teatral, da pesquisa acerca das Histórias dos Teatros Brasileiros e, em particular, das dramaturgias negras. Talvez não seja difícil identificar marcas, tanto lá, como aqui, no cinema, dessas linguagens sendo articuladas em diálogo.

 

Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974)

 

Era o desejo pelo passado

Voltemos à Tiradentes. Janeiro de 2020. Nós conseguimos o credenciamento de imprensa pelo Sessão Aberta, e fizemos um crowdfunding para viabilizar minha viagem. Inclusive, foi por conta dele que eu conheci Gabriel Araújo. De novo, fui “dançar dançando”. Dessa vez, um pouco mais consciente dos meus interesses sobre a relação entre raça e cinema, comecei a estudar e ver alguns filmes antes de viajar. Pelo o que lembro, era como se estivesse precisando me munir, nesse caso, de referências. Na ocasião, vi Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974), e não questionei nenhum dos textos que o nomeavam de “pai do cinema negro”, Pele Suja, Minha Carne (Bruno Ribeiro, 2016), Cores e Botas (Juliana Vicente, 2010), Kbela (Yasmin Thayná, 2015), O Dia com Jerusa (Viviane Ferreira, 2014). Li textos de Janaína Oliveira, Heitor Augusto, Kênia Freitas. Nem sabia, mas esse talvez tenha sido o primeiro momento que comecei a me dedicar aos estudos do cinema negro e brasileiro. E é curioso pensar que, nas minhas breves e entusiasmadas pesquisas no Google, tenham sido justamente esses títulos e nomes que foram sendo apresentados para mim. Não me chegou Odillon Lopez, nem Celso Prudente, nem Adélia Sampaio, nem Antônio Pitanga, nem Luíza Maranhão, nem Cristina Amaral. Aqui, parecia haver um marco temporal bem desenhado, uma forma como os discursos circularam e um “tipo” específico de cinema negro que se apresentaram na minha frente. No entanto, naquele período, isso não era uma questão para mim.

A Mostra de Tiradentes tem uma coisa particular de acontecer dentro de uma geografia muito limitada (parecido com o Janela, mas radicalmente diferente do Festival do Rio), ao mesmo tempo que reúne gente do país inteiro. Não preciso dizer, de novo, que não tinha muita noção sobre as pessoas com quem estava cruzando. Ocorreu algo, no mínimo, engraçado, que era o fato de “me conhecerem” por conta da campanha de financiamento. Isso fez com que eu acabasse “me enturmando”. Portanto, não posso dizer que essa foi uma experiência solitária. Lá, tive a oportunidade de reencontrar Juliano Gomes (que tinha visto rapidamente no Rio, numa sessão de M-8, do Jefferson De), Bernardo Oliveira, Janaína Oliveira, conheci Tatiana Carvalho Costa, Castiel Vitorino Brasileiro, enfim, uma galera. Uma galera preta. Fiquei ansiosa pelos debates da Mostra, pois falaram que eram acalorados. Ao menos, no passado. Na minha edição, sem tantas emoções. Para além das tantas pessoas que conheci, estive presente em uma memorável sessão do Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2020), e tomei conhecimento do que era a Revista Cinética, espaço que viria a colaborar, por alguns meses, mais de um ano depois. Outra vez, intuo que estar nesse lugar novo me fez ter poucas reflexões sobre as coisas que aconteceram por lá. Não consigo dar densidade àquilo que estava vivendo, mas consigo observar, agora com distância, algumas operações, tensões e disputas que, em maior ou menor grau, viriam a ter destaque ou se fariam mais nítidas no mundo virtual, com a pandemia de COVID-19.

No mais, ter ido a Tiradentes me fez entrar em contato com uma filmografia desconhecida. Assim como no Janela - e acho que isso é uma marca dos festivais - há algum tipo de porosidade em estar nesses espaços, uma abertura para lidar com formas que não são usuais aos nossos sentidos. E essa é uma premissa (e um desafio!) da prática da crítica: acompanhar o circuito contemporâneo, portanto, estar minimamente ciente das produções, tendências e discussões políticas envolvidas nas criações, nessas “respostas” para o agora. Mas, era o desejo pelo passado que iria se tornar latente por aqui.

 

Cabeça de Nêgo (Déo Cardoso, 2021)

 

Contra os binarismos determinantes

No primeiro ano de pandemia, tive acesso a muitos filmes, sobretudo a partir de cursos livres que fiz on-line, com temáticas das mais diversas: representações de mulheres, cinemas latino-americanos, africanos, cinema brasileiro moderno, crítica cultural, arquivos de teatro, história do cinema, introdução à linguagem cinematográfica. Participei de cineclube, grupos de estudos, conheci pessoas, continuei fazendo coberturas críticas e comecei a ser chamada para alguns festivais como crítica convidada, entre eles, o FestCurtas BH e o CineBH. Entre mil hiperlinks, torrents e referências bibliográficas compartilhados nessas atividades, havia um texto que circulava bastante entre algumas dessas conversas: o Por uma nova cinefilia, do Girish Shambu. É a partir dele que quero fazer uma dobra no pensamento, uma torção.

O binômio entre “nova cinefilia” e “velha cinefilia” tem ordenado uma pequena parcela do ambiente cinematográfico brasileiro, sobretudo o circuito independente e/ou não-comercial, no que se refere às disputas simbólicas, políticas e de poder em torno das criações e das representações, das políticas públicas e da circulação monetária. No limite, tal categorização acende perguntas à própria função do cinema. Essa divisão estabelece algumas tantas outras: o novo e o velho; o bom e o ruim; o urgente e o dispensável; o político e o estético; o dissidente e o normativo; o contemporâneo e o histórico; o autoconsciente e o irrefletido. Essas adjetivações perpassam por parte das discussões sobre o cinema brasileiro contemporâneo como uma coisa em detrimento da outra, um estado de anulação entre esses polos supostamente distintos. Chego no cinema justamente dentro desse campo de batalha. 

Enquanto mulher e negra, a minha “situacionalidade social” me empurraria para estar enquadrada na “nova cinefilia”. Bem, de início, fui capturada pela automatização. A minha entrada no cinema aconteceu justamente num momento em que o “nós x eles” estava (e ainda está!) totalmente acirrado. Considerando as lutas históricas em torno das representações negras; a estrutura que impossibilitou, por muito tempo, que pessoas negras ocupassem o lugar de direção e de outros cargos de poder dentro do audiovisual; além de todos os entraves político-ideológicos em relação às questões sócio-raciais, de gênero, classe, sexualidade, regionalidade, etc, unida à minha própria concepção de mundo, de relação com a esfera pública e política, parecia não haver outro espaço a não ser o de aderir a esse discurso de experienciar um “novo” tipo de cinefilia, não mais ligado ao mundo cisheteronormativo branco. Óbvio, seria impossível eu me encaixar nisso. Afinal, mulher e preta. E, de certa forma, assumir esse lugar - da “nova cinefilia” - era defender uma posição e, mais do que isso: estar em oposição, estar contra algo que deveria ser radicalmente negado. 

 

Kbela (Yasmin Thayná, 2015)

 

Não estou sendo reacionária, nem esteta, nem formalista, quando questiono sobre isso de “assumir um lado”, fechar-se num lugar. Parece que não aderir a esse binômio é ignorar as desigualdades e dívidas sócio-históricas que moldam, interrompem e/ou atravessam o fazer, pensar e sentir o cinema. Mas, não é isso que estou defendendo aqui. Pelo contrário: acredito que podemos nos aproximar de todas essas questões de uma forma mais distante desse processo de automatização e de seu consequente essencialismo. Reelaborar o modo como nos relacionamos com os filmes, as histórias dos cinemas, as disputas políticas e com nossas sensibilidades é acreditar na complexificação de nosso trabalho. E isso, para mim, se dá pelo desejo da dúvida, na desordem, em contato com o que está entre esses “pólos opostos”.

Nesse processo, a sensação que tenho é que saí do que acreditava ser um profundo desconhecimento em relação ao cinema até uma certeza absoluta do que os filmes deveriam ou não ser. Sinto que ia armada assistir aos filmes, sabe? Muitas vezes, eram aos meus desejos narcísicos que eles deveriam atender. E esses desejos, em algumas situações, estiveram camuflados por uma agenda política desejante de minha parte. Normal. E os filmes até poderiam atendê-la, numa primeira mirada, mas, depois de um tempo, quando passei a olhar com mais atenção para as estruturas (e para alguns discursos que os rondam), comecei a me questionar se eles não estavam, por vezes, dizendo justamente o contrário do que buscavam de alguma forma defender. É meio contraditório perceber que as discussões sobre cinema e gênero, cinema e raça, cinema e sexualidade, cinema e classe, me chegaram unidas a um engajamento coercitivo, um desejo de correção política em relação aos filmes e às histórias dos cinemas. É como se, em alguma medida, esse processo de afirmação viesse com um processo de embrutecimento, de pouca abertura aos filmes, aos seus meandros e suas complexidades, por justamente existirem nesse mundo, complexo, falho, para além de binarista, em que vivemos. E, no limite, parecia que gostar de história não combinava com essa ideia de novidade.

 

Compasso de Espera (Antunes Filho, 1973)

 

Pontos de Contato

No começo de 2021, após participar do Júri Jovem, na Mostra de Tiradentes, publiquei o que viria a ser minha última crítica no Sessão Aberta. Antes da saída do veículo, ministrei ao lado de Bruno Galindo a AMPLI_AR - Oficina de Crítica Cinematográfica, no Negritude Infinita. Nessa atividade, nos dedicamos a pensar cinema negro e crítica no contexto brasileiro, e o que desenvolvi particularmente nessa oficina foi um dos primeiros acenos às questões que apareceriam, de forma mais ampla e com outras nuances, na Perspectivas Pretas - Oficina de Crítica Audiovisual, que ministrei com Gabriel Araújo, mas, principalmente, no programa que estamos desenvolvendo para INDETERMINAÇÕES.

Sinto que esse pensamento cinematográfico que venho articulando, apreendendo, desconfiando, essa sensibilidade que tenho tentado ensaiar, se amplia e se modifica justamente nesses ambientes compartilhados, no contato com as ideias e comentários que surgem no meio das aulas, entre as edições dos textos críticos que são enviados durante essas atividades, sabe? Essa coletividade é algo que, particularmente, me instiga muito.

Tento esticar isso para o meu trabalho como editora também. Essa é uma outra marca da minha trajetória: aprendi a escrever sendo bastante editada. E, sinceramente, fico bem triste quando os textos retornam sem nenhum tipo de comentário, uma questão, uma provocaçãozinha ali. Bati muita cabeça com Juliano Gomes, na época do Janela, com Béth Nespoli, no Usina Teatral, e isso seguiu por quase todos os espaços formativos que passei. Até que tornou-se parte do meu cotidiano. Uma vez, um crítico me disse que eu era insegura e precisava legitimar minha escrita, quando a compartilhava com outras pessoas e conversava sobre os textos antes de publicar. Na verdade, acredito que é minha forma de tentar com que esse trabalho da crítica seja menos solitário e para que eu possa continuar experienciando esses encontros que sempre movimentaram muito meus pensamentos. Interlocução, né?

Todas essas ideias, do cinema, do teatro, da pesquisa, da história, me aparecem com muita paixão, desejo e vontade de contribuir coletivamente, de estabelecer conexões, de fazer movimentar as coisas. É também um projeto político, movido pela racialidade. Tenho o privilégio de poder retomar a essa breve trajetória (de quatro anos) e poder perceber os caminhos que me trouxeram a estar justamente agora, sentada em frente ao computador, escrevendo. 

Se houve persistência de minha parte, também houve remuneração, entendimento da crítica como labor. Hoje, há um empenho em atravessar (em coletivo) a precariedade e instabilidade de estar envolvida com a pesquisa e a crítica no campo do cinema (e, agora, com a programação de filmes, a partir do FestCurtas BH e do Janela Internacional de Cinema do Recife). Foi o desejo (e a possibilidade) de continuidade que produziram a maturação desses pensamentos e perguntas que surgiram (e surgem) durante esse percurso.

 

 

Instaurar a dúvida

A saída do Sessão Aberta se deu no risco e numa aposta. Desde que o fiz, maturava em meu corpo a ideia de fazer um espaço, mas não queria fazê-lo individualmente. Ao mesmo tempo, não encontrava ninguém que tivesse na instiga de lançar um blog de crítica naquele momento. Após ter participado do Laboratório de Crítica: Práticas do Olhar, organizado pela Revista Cinética e o Instituto Moreira Salles, e muitos meses sem veículo, fui convidada a integrar a redação dessa revista. Foi bem conflituosa a chegada, por estarem encarnados em mim justamente esses conflitos entre o “velho” e o “novo”. A saída do espaço foi um tanto mais. Com todas as contradições, os conflitos raciais, de gênero e, por vezes, etários, entrar em contato com filmografias que não estavam no meu radar e com a diferença de perspectivas de algumas pessoas sobre o cinema e o mundo produziram certos deslocamentos por aqui (sem querer ser binária, mas, para o bem e para o mal). Não esqueço de uma pergunta da Nicole Brenez que um dia a Ingá Maria trouxe: como um filme respira? Acho que tenho perseguido essa ideia.

Foram os filmes, a pesquisa histórica e a leitura de textos como (Apuntes) havia una critica feminista de cine que produziram vários deslocamentos no modo de me encontrar com o cinema brasileiro e negro. Como não olhar mais atentamente para Um é pouco, Dois é bom (Odillon Lopez, 1970)? Ou, para o complexo personagem de Grande Otelo, em Rio Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957)? Para a presença de Luiza Maranhão nos filmes do Cinema Novo, nos anos 1960 e 1970? Para a beleza e complexidade de um filme como Pedreira de São Diogo (Leon Hirzmann, 1952)? Para a forma como se discute a questão racial em Compasso de Espera (Antunes Filho, 1973)? Para a filmografia de Joel Zito Araújo, na década de 1990? Para escolhas nada “positivas” nas representações negras construídas em As aventuras amorosas de um padeiro (Waldir Onofre, 1975)? Para a ligação entre Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974) e o cinema experimental brasileiro?

“Ah, mas alguns desses filmes já foram muito investigados, já fazem parte do canône”, algumas pessoas podem dizer, defendendo mais uma vez “o novo”. Mas, esse reposicionamento dos sentidos e do modo de investigação no cinema me faz justamente pensar como esse aqui-e-agora pode rearticular as perguntas que lançamos para todas essas coisas que existiram (e existirão) em outras temporalidades. Penso que, se elas já foram vistas e revisitadas, que possamos reorganizar o modo como elaboramos nossas questões para os filmes, a forma como eles foram registrados e legitimados (ou não) pela historiografia, pela crítica, pelos artistas, pelo circuito, pelo público. E, se ainda não foram encontradas, que seja esse desconhecimento que alimente nossa imaginação, nosso desejo pelo vestígio, como possibilidade de rearticularmos as respostas que já tínhamos encontrado para as perguntas estabelecidas anteriormente. 

Foi dentro desse abismo de incertezas que passei por um processo de reabertura fundamental na minha lida com o cinema, com as práticas de minhas investigações e com o meu próprio trabalho. Essas brechas e fendas que fui criando na minha sensibilidade, a partir do contato com os filmes, com as pessoas, com as leituras, foram muito importantes para reformular minha escrita. Aprendi a tentar habitar a contradição, a gostar de negociar com as imagens, a tentar escapar do “binarismo determinante". Foi e tem sido a dúvida que tem me colocado em estado de movimento.

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