Esbarrar em tudo, ensaiar a crítica

por Letícia Bispo | Wed Jun 08 2022 15:48:15 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

Há algum tempo sou fascinada por dois mundos: o das palavras e o das imagens. Penso que minha incursão na crítica cinematográfica se deu primeiramente pela intimidade com as palavras, que eram território mais conhecido, em que solitariamente experimentei mais ao longo da vida. Apesar de ter me formado em Audiovisual, de ter atuado em áreas como produção e direção, as palavras acabaram por se tornar minha ferramenta principal para articular uma leitura sobre as imagens no mundo. E não foi porque me tornei roteirista: acabei me tornando, quase por acidente, crítica de cinema. Acredito que, justamente por serem mais distantes, por me inquietarem e surgirem de forma mais misteriosa, as imagens passaram a ocupar espaço grande em minha vida. E, nessa tentativa de tentar desvendar os filmes, eu passei a ler críticas cinematográficas. Quanto mais meu olhar se ampliava, mais sentia necessidade de ler. Lembro-me até hoje de quando assisti, aos 13 anos, Amor à flor da pele (Wong Kar-Wai, 2000) em uma mostra de cinema. É um filme com uma poética e um jogo visual tão sofisticado… E eu não tinha visto nada parecido até então. Minha tia assinava a revista SET, que existia à época, e recordo que procurei em todos os números algo sobre aquele filme - virou uma obsessão. Deve ter sido a partir daí, desse acesso a um filme que me desconcertou, que me desequilibrou, que passei a ler críticas. Eu lia o Omelete, lia o Pablo Villaça, a Isabela Boscov, o Luiz Zanin, ou seja, tudo o que aparecia em revista e jornal, mesmo que fossem dedicados a um circuito mais comercial. Como assistia a muitos filmes sozinha, era aos textos que recorria para ter uma forma de “conversar” sobre o que acabara de ver. No entanto, eu estabeleci uma relação de amor e ódio com esses textos… Detestava muita coisa que lia, porque as impressões acerca dos filmes, frequentemente, vinham acompanhadas de comentários de cunho machista e misógino. Pouco encontrava sobre representações ou filmes dirigidos por pessoas negras e LGBTTQIA+. Isso acabou me levando a ver mais filmes brasileiros. E, depois, a ler crítica brasileira mais independente, onde eu encontrava sobre filmes com essas temáticas e tantas outras. Conheci mais sobre a cena brasileira de cinema durante a graduação em Comunicação Social na Universidade de Brasília (UnB). Mas sentia um vazio que, hoje compreendo, muita gente preta que esteve na universidade pública nesses tempos deve ter sentido. No meu semestre de entrada na UnB, eu era a única aluna negra da habilitação em Audiovisual. Minha primeira experiência em direção e roteiro foi em um curta-metragem que fiz na metade do curso, sobre uma pré-adolescente preta que dava o primeiro beijo em um garoto branco e não entendia porque sofria rejeição depois. Tinha um subtexto com o cabelo, com não se sentir confortável na própria pele, não encontrar compreensão entre os amiguinhos brancos. O filme se chamava Charme (2013), mas infelizmente nunca o lancei oficialmente. Como trabalho de conclusão de curso, eu escrevi outro roteiro, chama-se O sal dos olhos (2015). Esse é bem autobiográfico: uma jovem negra periférica tinha que voltar para casa depois de viver com os amigos de faculdade no centro, de experimentar outra vida. Mas ela acabava sentindo que precisava voltar, recuperar algo, recuperar a relação com a sua mãe. Sendo assim, acabei reproduzindo nesses filmes o que senti durante a graduação, essa sensação de deslocamento em relação às pessoas brancas, que depois percebi ser algo comum à filmografia do cinema negro brasileiro da época. Mas, naquele momento, eu não tinha muita noção do que estava rolando em outras partes do país. O ano de 2015, quando lancei esse curta-metragem e me formei, foi o ano de lançamento de Cinzas (Larissa Fulana de Tal, 2015), de Kbela (Yasmin Thayná, 2015) e de Ela Volta na Quinta (André Novais Oliveira, 2015). E aí, mesmo sem conhecer esses cineastas, essas equipes, comecei a me sentir parte de alguma coisa, um movimento que vinha crescendo, se espalhando. Eu não sabia, mas tenho certeza de que a existência desses filmes, que dialogavam com os meus, foi de certa forma um impulso para que eu tentasse ocupar novos espaços. Glênis, Amanda e Letícia, do projeto Verberenas. Foto: Ana Luíza Meneses Verberenas, um experimento Ainda em 2015, em um grupo de Facebook de mulheres do Audiovisual da UnB, surgiu o assunto da crítica cinematográfica. Encontrei-me com algumas colegas, éramos todas recém-formadas, e decidimos criar o projeto Verberenas, um site em que pretendíamos postar nossos textos críticos, de maneira bem livre. No início, meio que “valia tudo”, no sentido de que falávamos de obras comerciais e independentes, ainda sem o foco maior nos filmes dirigidos por mulheres ou independentes, norte editorial que construímos depois. Na época, pensávamos apenas: “nosso olhar é importante, vamos expressar essa perspectiva”, “vamos escrever de modo diverso à crítica que não gostamos”. Então, começamos a escrever e convidar nossas companheiras de curso para contribuir. Algumas delas estiveram conosco de forma bem próxima, desde o início, como a Isabelle Araújo (que escreveu, entre outros textos, sobre a trilogia da avó, da Naomi Kawase) e a Bárbara Cabral (que colaborou diversas vezes, entre elas, sobre o filme Bixa Travesty, de Kiko Goifman e Cláudia Priscilla, 2018), entre outras colegas. Era comum que esses primeiros textos repercutissem mais entre nós, no Distrito Federal. Ainda assim, foram experiências bem importantes. Passamos a construir um espaço coletivo, em que pensávamos não só sobre os filmes, mas no modo como falar acerca deles. No começo, éramos uma equipe maior, até restarem eu, Amanda Devulsky e Glênis Cardoso à frente do site, que assumiu, a partir de 2017, o formato de revista digital. Acredito que o projeto se concentrou em nós porque tínhamos desejos parecidos, entre eles, o de publicar “textos de qualidade”. Essa percepção do que é “qualidade” foi se transformando ao longo do tempo. Durante a prática coletiva, debatíamos a todo tempo o que isso significava entre a gente, em comparação ao quê e a quem, e, nesse processo, nos tornamos, de fato, editoras. Todos os textos que publicávamos passavam por um trabalho de edição com pelo menos uma de nós, e isso não se concentrava em apenas evitar “erros ortográficos”: nós percebemos que essa etapa, de acompanhar a escrita umas das outras e das colaboradoras, acabava tornando os textos “melhores”, mais robustos. E essa prática acabou se revelando um modo interessante de conversar com as escritoras, de construir subjetividades de forma menos autocentrada, mais dialógica e política. Acredito que meu trabalho mais significativo na crítica ocorreu nesse backstage, no processo de edição, que também é uma experiência crítica, de pensar como vai se dar esse encontro entre o cinema, a crítica e a leitora. Assim como o significado da edição na revista foi se expandindo, e se tornando, inclusive, um trabalho curatorial, o nosso desejo de se estabelecer como um espaço de múltiplas vozes também cresceu. Tornou-se importante para nós nos distanciarmos de uma ideia única e essencialista da feminilidade, de univocidade das mulheres. À medida que fomos ganhando corpo, conseguimos nos aproximar de colaboradoras de outros lugares do Brasil, enriquecendo nosso espaço. Escritos de pesquisadoras, realizadoras, produtoras negras, indígenas, nortistas, nordestinas, sulistas, LGBTTQIA+, foram formando um conjunto muito heterogêneo, muito bonito, com formatos textuais cada vez mais diversos: ensaios, trocas de cartas, transcrições de podcasts, entrevistas, coberturas e textos sobre festivais. Mesmo com nosso crescimento, seguimos trabalhando com a particularidade da edição. Editamos, muitas vezes, o trabalho de pessoas que admiramos ou consideramos muito importantes (o que me trazia um frio na barriga!). E todas passaram pelo mesmo olhar criterioso, ávido por tirar o melhor do texto. Creio que justamente por isso, nunca nos tornamos um portal, um site que acompanha todos os lançamentos, nem todos os festivais. Tivemos algumas experiências com pequenas coberturas, como no Festival de Brasília de 2018 (revista nº03), e foram tentativas importantes, que nos ensinaram algo sobre como transitar nesses espaços do cinema. É gratificante ter o reconhecimento das pessoas do campo, mesmo tendo apostado nesse modo slow de crítica, nem sempre ligado no que é mais quente ao circuito de filmes, mais afastado do formato jornalístico. Foi no Verberenas que aprendi sobre o valor de falar sobre as imagens, os contextos, o que está sendo produzido, com certo tempo, certa distância. Nesse processo, percebemos que era importante manter uma relação com as leitoras durante os hiatos de publicação. Então, tentamos estar nas redes sociais, replicar os debates que estão acontecendo sobre o cinema; a Amanda se preocupava muito com isso. Vejo que, por ser cineasta, ela tem uma visão muito abrangente do cinema como um ecossistema, logo, precisávamos fazer algo (continuar a) girar. Imagino que dê para notar minha dificuldade em falar no singular. A ideia não é esmagar nossas particularidades, mas enfatizar como, de fato, as minhas maiores influências no exercício da crítica e da editoria foram Amanda e Glênis. Eram as pessoas que editavam meus textos, com quem podia trocar as ideias mais íntimas sobre cinema e compartilhar a vontade de ver pensamentos incríveis sobre o campo circularem. Alguns textos delas estão entre os que mais admiro: O vazio e a penetração: Mate-me Por Favor (2017), de Amanda Devulsky, e Filmes me ensinaram a comer (2019), de Glênis Cardoso, são exemplos de excelentes ensaios críticos, nos quais os filmes acionam uma série de questões, quase como se tivessem corpo e pudessem nos tocar, nos transmitir complexidade sobre o mundo. Frame do filme Café com Canela (2017), de Glênis Nicácio e Ary Brito Aliás, dentre os meus textos que mais gosto, percebo que também ensaiei esse tipo de aproximação com os filmes. Por exemplo, quando escrevi sobre minha inquietação com o hype de O Regresso (Alejandro González Iñárritu, 2015) no Oscar de 2016. Ou quando tentei escrever sobre minha espectatorialidade ao assistir Café com Canela (Glênis Nicácio e Ary Rosa, 2017) pela segunda vez. O engraçado é que, hoje, vejo várias tortuosidades nesses textos, mudei de perspectiva sobre muitas das questões colocadas… Acho que fazia uma série de generalizações, o que evito hoje em dia. Mas continuo gostando deles justamente por terem sido críticas que me saíram pelos poros, em torno de filmes e debates que me afetaram verdadeiramente. Talvez tenha aprendido mais com Amanda e Glênis, com nossa prática conjunta, do que com a faculdade. Aprendi, com esse nosso movimento, abrir as questões em vez de encerrá-las, em pensar o cinema em contato com as urgências do mundo, e também com as pessoas, com nossas dúvidas, erros e desejos. Na verdade, penso que é um movimento inverso ao que conheci na universidade, em algumas disciplinas, de tentar levar os estudos de cinema a certo lugar de autonomia, de separação do cinema em relação às outras artes e formas de pensamento… Coisas que nunca me desceram. Acho que nem sabíamos no início, mas sinto que esse foi um dos pontos de partida para a existência do Verberenas: tínhamos uma série de questões sobre as mulheres no cinema – na realização e nos espaços críticos – que foram se expandindo… E só poderíamos responder a essas dúvidas praticando, nos expondo. E praticar é justamente esbarrar em tudo, ensaiar a crítica. Hoje, entendo que essa pulsão crítica traz os objetos para mais perto da nossa vida, de nossas leituras, de nossas profundas inquietações... Torna os objetos cinematográficos cada vez menos objetos, torna-os seres pulsantes de uma natureza mais próxima, menos binária, menos conformada, que sentimos necessidade de investigar e tocar. É nesse sentido que pontuo como as experiências críticas, as minhas, de minhas colegas e de outras que acompanho, me ensinam tanto sobre cinema. Capa da revista Verberenas nº05, março de 2021. Ilustração: Taís Koshino Acho necessário pontuar que, apesar de estarmos em atividade desde 2015, escrevendo, editando, sendo convidadas para participar de mesas e palestras, foi apenas em 2021 que conseguimos nos remunerar por nosso trabalho e de todas as colaboradoras do projeto. Antes, nosso site saía do nosso bolso, até mesmo quando viramos uma revista digital, em 2017. As quatro primeiras edições foram realizadas inteiramente por nós e por várias colaboradoras que toparam a empreitada gratuitamente, por acreditarem no valor do projeto. Até mesmo as oficinas que ministramos (como a que ocorreu no primeiro Festival Universitário de Brasília - FestUni), e nossas contribuições com mesas e debates, eram quase sempre gratuitas, e os poucos cachês que recebemos foram muito mais de cunho simbólico. E eles sempre acabavam sendo aplicados no projeto. Então, o ano de 2021 foi muito especial. Lançamos quatro revistas e realizamos quatro sessões de filmes com debate, e, pela primeira vez, conseguimos realizar o projeto da maneira como sempre sonhamos: pagando dignamente a todas - escritoras, ilustradoras, assessoras de imprensa e redes sociais, produtoras, debatedoras, revisora, designer, desenvolvedora do site, e várias outras pessoas - pelo valoroso trabalho. Tudo isso foi possível porque ganhamos um edital do disputado Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal. Infelizmente, sabemos que essa não é a realidade da maioria das revistas e sites independentes de cinema. O trabalho no Verberenas abriu meu olhar para a existência de uma paisagem crítica muito rica, de pessoas com variadas formas de propor discussões sobre o cinema. Dentre algumas que admiro, estão: os sites dos críticos Carol Almeida e Heitor Augusto, o podcast Feito Por Elas, que alimentou bastante minha cinefilia com sugestões e comentários que sempre expandem os trabalhos apresentados; a revista Multiplot!, que tem a proposta de reunir diversos textos ao redor de um tema por publicação, o que cria uma ressonância muito enriquecedora, um gesto de constelação crítica muito admirável; e, é claro, a Revista Cinética, que foi uma das maiores referências como site de crítica de cinema ao longo de anos. Inclusive, tive a oportunidade de fazer uma oficina bem bacana com a editoria da revista, chamada Laboratório de Crítica: Práticas do Olhar (2020), em parceria com o Instituto Moreira Salles. Nessa oficina, a equipe compartilhou muitas referências que hoje considero fundamentais, me ensinaram sobre um contato mais arriscado com as imagens… É impressionante como, sem querer e sem saber, nós podemos nos manter num ambiente seguro ao escrever sobre os filmes… E é aí que o potencial crítico e dialógico pode se dissolver. Aprendi muito com eles sobre o que eles fazem muito bem: textos que unem certa erudição a uma tentativa de colocar as imagens no mundo, destacá-las de certo ambiente protegido em que, muitas vezes, elas ficam. Nessa oficina me aventurei a escrever, por sugestão, uma crítica sobre um filme “memético”, no caso, um vídeo feito pelo ator kaíque brito para o TikTok. Por fim, há a revista inglesa Another Gaze, que é uma inspiração gigante para mim, e também para o Verberenas: é fantástico quanto conteúdo de qualidade, com múltiplas escritoras, elas conseguem reunir, em vários formatos diferentes. Sessão de curtas Verberenas + Cine Cleo, na inauguração do ateliê Gruta + 3 anos de Vulva Revolução. Foto: Divulgação O contato com a produção negra Nos últimos tempos, o que mais têm transformado meu olhar é o contato com as/os críticas/os negras/os, e essa é a literatura que mais procuro, que me toca, de fato. Os ensaios da Kênia Freitas, por exemplo, foram para mim portas de entrada para uma série de referências que hoje utilizo, não apenas em meus textos críticos, mas nos textos acadêmicos, em meu mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tenho uma admiração enorme pelo seu trabalho, que traz tensionamentos utilizando diversas áreas do conhecimento, e de uma forma muito generosa, apresentando pensamentos em construção. Ela transita muito bem entre a crítica sobre um filme, como o texto sobre Vaga Carne (Grace Passô e Ricardo Alves Jr., 2019), e textos mais abertos, em que vários filmes surgem em torno de uma ou várias ideias, como o ensaio Performando-se negre no cinema: anotações para uma conversa infinita (2020), publicado na Revista DR. Aliás, essa é para mim a característica mais marcante do ecossistema crítico negro que se formou nos últimos anos: essa chamada direta para a conversa, para pensar junto, e esse diálogo entre os textos e os filmes de maneira pouco hierárquica, muito mais fluida do que eu via antes. Acredito que as pretas e os pretos estão na vanguarda do que o cinema brasileiro irá se tornar e tudo parece ser muito orgânico. A tal ponto que as mostras e festivais não puderam continuar indiferentes a esse fenômeno, e esses novos críticos estão por lá, propondo oficinas críticas e cursos. Kênia Freitas, por exemplo, já ministrou vários, e têm críticos que também são cineastas, como o Fábio Rodrigues Filho, que já ocupou essa função… Aos poucos acabamos por nos tornar também curadores, junto a outras várias pessoas, e acredito que isso se dá justamente pela riqueza do material crítico que vem sendo produzido. As/os críticas/os pretas/os parecem estar vivendo, respirando, se alimentando de perturbações muito próximas das que vivem as/os cineastas negras/os, o que torna essa separação mais tênue. Às vezes, para mim, ela parece não fazer nem muito sentido… Estamos todos pensando como (e se queremos) ocupar esses espaços que antes eram apenas ocupados por brancos, nas contradições e ambivalências que surgem quando decidimos transitar no cinema… O cinema negro contemporâneo é o que parece estar mais próximo da crítica, talvez porque expressar (múltiplas) vontades e dúvidas nos coloquem em um lugar mais horizontal. Será que estou sendo muito otimista? Eu acho, de verdade, que essa geração atual do cinema negro é muito pulsante, no sentido de que as transformações são rápidas (talvez porque são urgentes?), de que assumimos identidades ao mesmo tempo em que apontamos nossas contradições. Talvez essa seja a razão da ressonância, da conversa entre as imaginações dos filmes, das críticas e, como consequência, das curadorias negras. Vejo que tem muita gente preta pensando sobre futuros, possibilidades de invenção, em ultrapassar a representação, em deixar palpitar as dúvidas e opacidades... E como não, né? Deve ser o resultado de pensar cinema e vida, tudo misturado. Acho que não tem como pararmos de pensar na vida, em tudo que implica estar nesse mundo que está sempre nos matando e em que estamos sempre inventando modos de viver. E escrever (ou filmar) enquanto se pensa, enquanto tudo está borbulhando, como alguns críticos/cineastas/curadores estão fazendo, é de uma generosidade muito grande. Por exemplo: acompanhei como leitora uma série de ensaios interligados desde 2018 que, se não me engano, iniciou-se com um texto do Heitor Augusto que chamava para um debate sobre o que poderia ser o cinema negro dali em diante. Ele enumerava várias provocações sobre representação e representatividade, sobre o que pode ser o filme negro (para além da ancestralidade, por exemplo), e várias outras questões pertinentes… e daí veio o Juliano Gomes, da Revista Cinética, e re-provocou. Bruno Galindo, curador, respondeu ao texto do Juliano Gomes com um manifesto bem desafiador, e daí… se tornou uma espécie de troca de cartas, eu nem sei se li todas (risos), mas o diálogo segue até hoje. Em 2021, publicamos no Verberenas a retomada da conversa pela Lorenna Rocha. É uma série de movimentos de uma importância que nem podemos definir ainda. Eles e ela abriram e seguem abrindo diversas rotas de pensamento, deixando desafios tanto para os estudos do cinema contemporâneo, quanto para uma historiografia, para um arquivo do cinema negro que ainda está em formação. Talvez eles nem saibam – porque como editora me acostumei a ficar aqui mastigando e sorvendo os textos bem quietinha – mas estimularam (e estimulam!) muito meus pensamentos, meus modos de entrar em contato com os filmes... Tudo se transformou inteiramente para mim a partir da relação com essa corrente crítica. Frame de Vaga Carne (2019), de Grace Passô e Ricardo Alves Jr. E agora? Depois da publicação de quatro revistas Verberenas e da curadoria das Sessões Verberenas que fizemos no ano passado (2021), meu trabalho crítico está em certa suspensão. Ou melhor, voltou-se para dentro, ou para um espaço muito particular, uma vez que estou usando todos esses modos de olhar e me aproximar do cinema, ainda pelas palavras, mas agora com mais dedicação na minha dissertação de mestrado. Foi a maneira que encontrei, no momento, de contribuir com esse campo de reflexão que, acredito, está transformando não só a crítica como a própria academia. Também me voltei para a prática da curadoria, tive a oportunidade de trabalhar nos últimos anos em algumas mostras muito interessantes, como o FestCurtas.bh, a Mostra do Audiovisual Negro e o Festival Rastro, além, é claro, das Sessões Verberenas. Foram todas experiências muito desafiadoras, porque tive que ponderar muito do que aprendi como crítica, por exemplo, no sentido de entender como é construída uma programação. Mas penso em continuar a exercitar a prática crítica depois do mestrado, no Verberenas ou em parcerias em outras publicações com propostas similares ao que fazemos lá (no sentido do cuidado com os textos), em que eu possa ter certo tempo para escrever e refinar o texto. Afinal, continuo gostando de ruminar as coisas nessa minha relação com as imagens. Nesse trajeto como editora e curadora eu tive acesso a tantas perspectivas diferentes sobre o mundo, as pessoas, as emoções - foi impossível não me sentir permeável, em mudança. Meu desejo é continuar esse ensaio que começou nos textos, nas críticas, continuar experimentando, disputando… Temos muita a disputar neste momento em que tudo o que conquistamos, toda a multiplicidade que fizemos emergir, está sob a ameaça unificadora e violenta do fascismo do século XXI. O que vem depois é um mistério, mas quero contribuir com a expansão do mundo que vier. Depois de tanto tempo experimentando com as palavras, vislumbro até a possibilidade de voltar a fazer filmes, algo que pensava ter deixado inteiramente para trás. Acho que essas vivências, como crítica e curadora, me mostraram, e seguem mostrando, que existem diversas maneiras de se relacionar com os filmes e com outros universos. Estou interessada em tornar meu olhar cada vez mais permeável. Creio que esse caminho de me tornar “sujeita” através das palavras transformou minha vida, me permitiu estar hoje no espaço acadêmico, algo que lá atrás eu mal vislumbrava. Mas agora tem surgido em mim o desejo de perambular também, sair um pouco desse casulo que eu construí e variar o olhar.

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