Desejemos nossa vulnerabilidade, pois receberemos em dobro

por Juliano Gomes | Tue Jun 21 2022 17:58:58 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

No texto que segue, usei as perguntas que me foram enviadas como guia e acabei estruturando uma espécie de entrevista “falsa”. Algumas respostas acabaram levando a outros caminhos porque o assunto é mesmo vasto. Pra quem está com pressa e não vai ler muito mais do que este início, vou resumir aqui: não faz sentido o Brasil e a comunidade negra não investirem pesado em crítica negra, porque só ela vai formular e consolidar critérios e epistemes que se relacionem fertilmente com os materiais que têm sido produzidos. É incongruente a movida racial atual sem que essa seja uma das principais demandas. Todo mercado capitalista é, em alguma medida, um mercado de escravos. Enfim, fiquemos ligeiros. Nas linhas abaixo, começa a entrevista que não era exatamente uma, mas foi o que deu. Fiz com prazer e ao lado de uma angústia alegre.

 

Quando você começou a escrever críticas de cinema? Como isso se deu? 

Não sei bem se foi 2006 ou 2007. Essa linha é sempre difícil de traçar. Olhando pra trás, me lembro de, por volta de 2001, me encantar com Arraial do Cabo (Paulo Cezar Saraceni, 1959), escrever um texto sob esta emoção e a professora Angeluccia Bernardes Habert me devolver o trabalho na faculdade dizendo achar o texto bom. Ali senti uma coisa. A partir de 2005, comecei a conduzir um cineclube no recente curso de audiovisual da PUC-Rio, o CinePuc, com Fábio Andrade. Toda semana discutíamos um novo filme. Isso durou três anos. Toda semana pesquisava sobre uma obra, arranjava o que dizer. Ao mesmo tempo, dei uma sorte muito grande, porque, no Rio de Janeiro, havia vários elementos constituintes de uma cultura rica de cinema nessa época - cuja riqueza só percebo com nitidez agora. 

O Festival do Rio tinha uma programação muito boa, trazendo ótimos filmes recentes e também retrospectivas. Vivi grandes momentos, principalmente na sala do Odeon. As salas não comerciais estavam em seu melhor momento, como o cinema do CCBB. O próprio Odeon passou a ser programado pelo Grupo Estação (importante iniciativa que tem a ideia de cinema como arte como um vetor importante) e virou uma sala de repertório, com preços em conta, no centro da cidade. Além disso, a cultura das revistas online de crítica estava em seu auge, com a Contracampo muito ativa, Cinemascópio, Cinequanon, Cine Imperfeito, Filmes Polvo (onde, inclusive, Gabriel Martins escrevia), vários blogs interessantes. 

Lembro quando fui pela primeira vez na Sessão Cineclube, promovida pela revista Contracampo nos cinemas do Grupo Estação. Foi realmente um espanto e um encontro. Porque vi um tipo de reflexão muito aguda, muito densa e material, sobre cinema. E aquilo ia de encontro ao que sentia, mas estava descobrindo como expressar. Fiz curso com eles no Tempo Glauber (lugar que já não existe, onde encontrava o acervo do Glauber, esbarrava com Dona Lúcia, mãe dele) e passei então a acompanhar essa cena. E, certamente, abriu-se, com esse ambiente, uma possibilidade na minha cabeça que antes não existia, que combinava com minha sensibilidade e fazia sentido.

Outro evento que estava em ótimo momento era o É Tudo Verdade. Pra vocês terem uma ideia, um dia, numa retrospectiva do Jean Rouch no ETV, o ingresso acabou. Acho que as senhas talvez fossem grátis e foram distribuídas pela manhã. Cheguei e não tinha mais. Peguei o papel da senha de um amigo e fui até minha casa no Leblon - que era uma viagem de uns 50 min do CCBB - para copiar e falsificar uma senha para… assistir um filme etnográfico! Vocês imaginam isso? E não era exagero, aqueles dias mudaram minha vida, minha concepção de cinema, o filme era Pouco a Pouco (1972). E aí, na hora, levei meu estelionato e o segurança-bilheteiro sacou. Acredita? Ele pediu para eu esperar. E, depois que todo mundo entrou, ele disse: “pode entrar, trabalho aqui há anos e nunca vi ninguém fazer isso antes… você deve querer mesmo ver este filme”.

 

Frame de Santiago (2007), de João Moreira Salles

 

Nesses anos, fiz alguns cursos ligados ao cinema documentário. Tive aula com Eduardo Coutinho, Walter Lima Jr., Geraldo Sarno, e fui até monitor do curso do João Moreira Salles na PUC, quando fazia graduação em Comunicação lá. Me aproximei desse grupo. Estava muito próximo deles na época da feitura de Peões (2004), do Coutinho, e de Santiago (2007), do João. Víamos cortes dos filmes, conversávamos, era mesmo ótimo. João e Coutinho foram lá no CinePuc comentar Jonas Mekas (por influência deles, fui fazer meu mestrado sobre o Mekas, que era também crítico de cinema). Nesse contexto, o crítico Carlos Alberto Mattos me chamou para colaborar num espaço online no jornal O Globo que chamava-se DocBlog. E aí talvez tenha sido a “estreia oficial”. Acho que colaborei por uns dois ou três anos, em geral com coberturas do É Tudo Verdade.. 

Em 2010, me chamaram para a Revista Cinética e aí botei os dois pés dentro da coisa. Tinha mais de 25 anos nessa época. E já uns bons sete anos de cinefilia intensa, talvez mais, porque entrei na universidade com 18 anos, em 2000. Olhando para os textos dessa época, não os acho ruins. Por um lado, não sinto que o olhar dos meus textos mudou muitíssimo. Era leitor da Cinética, da Contracampo, então foi meio um sonho quando me chamaram. Acho que essa relação, para quem é mais jovem, mudou muito hoje. Imagina hoje sonhar em participar de uma coisa onde não se ganha dinheiro?

Como estava o cenário cinematográfico negro e brasileiro na época? E da crítica?

Não pensava nestes termos à época. Pouca gente pensava. Havia alguma repercussão do Dogma Feijoada, os primeiros filmes do Jefferson De, A Negação do Brasil (2000), do Joel Zito, era isso que ouvia falar. Conheci o Zózimo Bulbul um pouco depois, fui ao Centro Afro Carioca de Cinema, tive com ele, com Biza Vianna. Não sei se mesmo hoje podemos falar numa “crítica negra”. Teríamos que inventar um contorno pra isso. Mas, sem a circulação digital de filmes, as coisas tinham um outro contorno. Por conta da minha mãe, Elisa Lucinda, que é escritora e atriz, sempre tive alguma proximidade com artistas negros aqui no Rio. Conheci o Grande Otelo, o Zózimo, Pitanga, Léa Garcia, Ruth de Souza, o Luis Antonio Pilar, o Antonio Pompeo, Paulão, e muitíssimos outros… Era interessante, porque meu convívio com essas pessoas, em maior ou menor grau, já era formação. Percebo isso hoje. Formação racial mesmo, sabe? Eu demorei pra entender porque essas pessoas agiam quase sempre no sentido de me validar como negro. Quando criança eu não entendia o sentido disso. Mas enfim, acho difícil traçar um contorno de algo como um “cenário cinematográfico negro”. Não vivi isso nos anos 2000. Você tem toda a discussão em torno do Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), o Nós do Morro, os curtas que vieram desta movimentação… Isso está ali, no Rio de Janeiro. A Danddara, Luciana Bezerra, Cintia Rosa… Os filmes eram de alguma forma falados e recebidos, mas a ideia de “cinema negro” circulava pouco. As ideias tem história, né? Há artistas negros que nem trabalham a partir desta ideia, o que é pra mim uma questão muito interessante… E sobre a crítica, aí é ainda pior, não sinto que isso se constitui, sabe?

Bernardo Oliveira atuou na fundação da Contracampo, em 1998. Acho isso um dado mais do que importante. Bernardo é um amigo e uma referência para o meu pensamento. E a coisa é complexa também porque tudo isso está relacionado às formas da racialidade no Brasil, a questão da autodeclaração, entende? Dependendo da perspectiva do olhar, você vai ver pessoas que não tem cabelo liso, que não tem pele clara, que não tem “nariz fino”, que tem pais negros, trabalhando com crítica e pensamento. Mas o que fazemos com isso? É um tema que me interessa e para o qual não tenho mesmo resposta. A pesquisa histórica tem disso, porque a pessoa não está mais aí para se autodeclarar (por isso também essa tendência contemporânea a rejeitar o histórico, porque é difícil realizar os rituais do presente — como a autodeclaração — no passado). 

No começo de 2018, Heitor Augusto convidou a mim e a Kenia Freitas, para fazer uma revista de crítica de cinema negro. Era algo que eu também tava pensando. Fiquei muito empolgado. Chamamos de revista Corre. Mas infelizmente, não conseguiu seguir. Fizemos muita coisa pro primeiro número, várias colaborações de artistas fodas, mas a coisa parou. E aí o Heitor seguiu pra NIcho 54 e acabamos desmobilizando como grupo. Acho uma pena. Queria e ainda quero muito que uma publicação como essa role. Séria, constante, coletiva, sabe? Seria de imensa contribuição. Acho quase surpreendente que em 2022 isso ainda não exista. Quem estiver lendo: faça.

Quais espaços foram imprescindíveis para a sua prática da escrita crítica?

Como falei acima: a universidade, os cursos livres, as salas de cinema de rua, os centros culturais, os festivais e as revistas de internet. Era um ambiente onde o discurso agudo sobre os filmes era algo vivo, válido. Mas, de modo geral, a vivência na Cinética, desde 2010, me deu algo que acho que não teria em lugar nenhum em relação ao desenvolvimento da minha escrita. Porque lá os textos eram editados com muita atenção. Era um tensionamento constante, produtivo. Ninguém falava que meus textos eram “muito bons”. Tinha uma sensibilidade ética. E sinto que isso me deu ferramentas muito importantes. Até hoje sinto muita falta quando um texto meu “não volta”. Amo comentários, discordâncias que apontem para as fragilidades da minha escrita. Para mim, alguém gastar tempo prestando atenção verdadeira a meu trabalho é sempre um motivo de ânimo. Gosto muito mais de atenção do que de elogio.

Meu diálogo com Fábio Andrade, principalmente na editoria da Cinética, foi uma situação fértil. Porque nós temos sensibilidades bem diferentes. Formas distintas mesmo de pensar e de escrever. Então era a melhor situação, porque ele me puxava para lugares onde não tenho facilidade, e hoje acho que meus textos são melhores. Sempre tive apreço por uma certa precisão das ideias, por descrever o que ainda não tem forma definida, e isso acaba, às vezes, fazendo o texto ficar um pouco mais sinuoso, com menos entradas, sabe? Nesses anos de Cinética, acho que consegui melhorar um pouco em termos de clareza, sem baratear as ideias, entende? Tenho um jeito de pensar meio “lateral”, que nunca para de abrir janelas, por isso acho que tenho certa tranquilidade em comparar coisas, mas isso às vezes tem que ser dosado, porque o texto, afinal, é para o outro (inclusive, é por isso que crítica é importante).

Nesses anos de Cinética também aceitei que o que eu poderia oferecer é um pensamento não “endogâmico” em relação ao cinema, mas um pensamento que vai buscar coisas “fora”, sabe? Nas artes visuais, na filosofia, na literatura, na música... Não para ilustrar ou para representar, mas para comparar métodos e abordagens. Sou louco por métodos, práticas, sabe? Mas enfim, percebi que nunca ia ser aquele cara que viu todos os filmes, então hoje vivo tranquilo em relação aos “filmes essenciais” que não vi. O que meu trabalho busca oferecer são as pontes. Apesar de admirar muito colegas como o Filipe Furtado, que vê centenas de filmes por mês… Acho que isso faz sentido. Só não é a minha.

Quais textos guiaram e/ou guiam seu fazer crítico?

Taí uma coisa dificílima de delimitar. São alguns marcos. A leitura num grupo de estudos com o professor James Arêas, dos livros Cinema 1 e Cinema 2 (Imagem-movimento e Imagem-tempo), de Gilles Deleuze, me mostraram uma possibilidade ilimitada do escrever sobre cinema e, principalmente, de encarar os filmes seriamente como produtores de ideias, e não reprodutores da consciência pessoal dos diretores. Trago muito dessa filosofia uma perspectiva de abordagem não essencialista - que encontro hoje em Fred Moten, por exemplo. De fato, talvez venha daí o que é principal no meu modo de pensar, que tem a ver com buscar os corações conceituais das coisas, entender se as obras têm um modo, e que cara tem esse modo. No começo dos anos 2000 eu estudei o filme Limite (Mário Peixoto, 1931) com meu grande amigo e parceiro Léo BIttencourt (com quem dirigi dois filmes: … [2007] e As Ondas [2016], e colaboramos recentemente no curta dele, Vagalumes, de 2021). Léo é um grande parceiro de estudo, ele é formado em filosofia, me estimulou muito a um certo rigor no pensar, e nessa época, comecinho dos nos 2000, devoramos o livro do Saulo Pereira de Mello sobre Limite (1931) - sinto que tudo que já fiz em matéria de filme exala algo relacionado ao filme do Peixoto, é curioso isso. Nesse período próximo a minha entrada na universidade, a leitura do livro Hitchcock/Truffaut, acompanhada do devorar da obra do diretor inglês, foi um ritual de iniciação formidável. Havia ali, em uma proporção maravilhosa, objetividade, paixão e especulação. Vale mais que muito curso de cinema. Ler esse livro vendo os filmes, recomendo muito.

 

Alfred Hitchcock e François Truffaut, em 1962

 

Houve uma vez um texto na Contracampo sobre o cinema de Apichatpong Weerasethakul, falando de “drone cinema”, que foi marcante pra mim, feito pelo Ruy Gardnier. A leitura de Maurice Blanchot me mostrou a possibilidade da crítica se fazer num nível de radicalidade comparável ao das obras, pensando que sua própria linguagem e estrutura é parte determinante da abordagem. Destacaria o livro o Espaço Literário, mas o Blanchot tem uma obra rica e vasta, muito viva e sempre intensa. Ele parece sempre estar escrevendo como se fosse seu último texto. Sou muito tocado por essa intensidade, porque nela existe paixão e rigor. Às vezes, abro um livro dele só pela energia das palavras. Em geral me interessa muito escritores e artistas em geral falando de arte, isso faz imensa falta hoje. Os escritos de Glauber, do Sganzerla, do Hélio Oiticica, do Lima Barreto, são materiais muito férteis. 

O livro Ensaio Geral, que reúne textos críticos do artista Nuno Ramos, foi e é um guia para mim, em termos de rigor e inventividade, até hoje. O ensaio dele, Ao redor de Paulinho da Viola me causou um espanto fundacional. A Rampa, de Serge Daney, funcionou como parâmetro de estilo e ética, trazendo esse compromisso com um certo rigor inespecífico que Daney sempre traz. Para finalizar, na Cinética, trabalhei com muita gente que é e era referência pra mim. Então, o processo de leitura dos textos e também de edição, com Fábio Andrade, Eduardo Valente, sempre foi meu espaço de mais intenso aprendizado.

Acho que o centro de referência até hoje do meu fazer crítico – consciente e inconsciente – é o que Torquato Neto fazia na sua coluna Geléia Geral, no início dos anos 70. Está publicada no livro Os Últimos Dias de Paupéria. Torquato é um poeta e pensador piauiense muito importante pra cultura brasileira dos anos 1960 e 1970, é um dos reais idealizadores do que vai se chamar Tropicália, na contracultura do período. Torquato é um poeta. Antes de tudo, as canções que têm letras dele sempre foram as que mais me pegaram - sem que eu soubesse seu nome. Nessas colunas no jornal Última Hora, Torquato fazia textos curtos, notas telegráficas sobre a cultura brasileira do período. Eram poemas disfarçados de jornalismo cultural - e vice-versa. Sempre sonhei em fazer aquilo, e mesmo que não queira, acho que estou sempre imitando aquilo. É uma espécie de gênero poético e jornalístico que sinto que ele inventou. É crítica feita por um poeta, onde as palavras importam muito, a velocidade é essencial, o ritmo, sabe? O texto está em jogo, ele é a arena Sou inteiramente produto desta leitura. Sinto que no germe da Contracampo, nos anos 1990, essa influência estava no caldo também que os formou. Talvez vocês conheçam a música Cajuína que Caetano fez pra Torquato… Enfim, tenho uma identificação muito densa com a sensibilidade que se expressa nos trabalhos de Torquato, e também na sua forma de atuação, meio invisível, mas decisiva, essas pessoas que sempre estiveram ali, conversando com os artistas, pensando a relação do mundo com as formas de expressão, com o Brasil... Enfim, é basilar para mim.

Houve algum festival de cinema que foi importante para a profissionalização de seu trabalho?

Festival do Rio e É Tudo Verdade foram os primeiros eventos onde tive uma credencial de imprensa, onde fiz cobertura de festival. Profissionalização em crítica no século XXI é um assunto hiper complexo… A Mostra de Tiradentes sempre foi minha maior escola e, em termos de crítica e pensamento, sempre foi o evento de ponta no Brasil, o que realmente valoriza os críticos e a crítica, quase sem comparação, talvez até no mundo. É, sem dúvida, o principal neste processo no Brasil. O Festival de Brasília, em 2017, com toda repercussão e debate sobre o filme Vazante (Daniela Thomas, ano), me deu alguma visibilidade nesse campo de trabalho. Mas o assunto “crítica e profissionalização” é - ou ao menos deveria ser - objeto de grande debate. Porque essa é uma atividade sem o menor apoio institucional hoje. Ela não produz bens que interessam ao capitalismo, já a curadoria é diferente. Por isso esse desnível imenso em termos de profissionalização. Crítica tem um laço umbilical com coletividade, partilha e não acúmulo. E não com a sensação de estrelato.

Qual a sua leitura sobre a questão da remuneração de críticos no Brasil? A (não)remuneração interfere na (des)continuidade de seu trabalho enquanto crítica?

Interfere diretamente. Defendo que haja políticas públicas para crítica e jornalismo cultural. Crítica e pensamento não institucionalizado não interessam mais a quase nenhuma instituição. Nesse momento meio “pós imprensa” que vivemos, essa crise é muito aguda. Seria importante haver uma mobilização do campo em torno da proteção e estímulo do exercício crítico. Mas estamos longe disso. Quase só se pensa na dimensão publicitária do nosso ofício (a palavra “legitimação” parece que virou um mantra). Sinto que há uma negligência histórica, deliberada, do setor cinematográfico como um todo em relação ao pensamento crítico, ao exercício da reflexão independente, não universitária. São muitos raros os entes que deliberadamente valorizam esse exercício. E é uma atividade “barata” pensando em escala de orçamentos. Não seria complicado estimular publicações periódicas sobre o cinema “brasileiro”, “paraense”, “indígena”, “gaúcho”, “transgênero” ou o que for. O que fazemos, crítica com compromisso, é uma militância quase invisível como gesto político que é.

E, hoje, quando a imagem em todas as suas dimensões atravessa o cotidiano, isso se torna algo ainda mais importante, não só para quem é “do meio”. Nós estamos pensando, desde sempre, nas implicações políticas das imagens em relação a vida (delas e nossa). Hoje, as imagens em movimento estão formando crianças, jovens e adultos, na maioria das vezes sem nenhum aparato crítico mediando esse processo. E, se pegarmos a história da arte e do cinema, é o gesto crítico que cria o mito da Semana de 1922, é ele que “cria” inserindo na história Limite (1931) de Mário Peixoto, é ele que coloca Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1973) como uma espécie de marco contemporâneo (mereceria um livro só para ele, inclusive, porque sua fama não condiz com as parcas análises materiais)... Enfim, crítica é esse ato de esticar os filmes, de relacioná-los com um contexto qualquer. E produzir evidências e desdobramentos de sua existência.

 

Frame de “Alma no Olho” (1973), de Zózimo Bulbul

 

Os cineastas raramente percebem que estamos do mesmo lado, que somos aliados, mesmo quando vemos “equívocos” nos filmes deles. E, pensando no campo do cinema negro, naturalmente, a situação é ainda pior. Principalmente, pela falta de hábito. Porque essa tradição da prática crítica foi feita em geral por pessoas brancas - e, mesmo entre elas, obviamente é minoritária. Esse pequeno grupo que valoriza tal exercício é em sua maioria branco. Então, a prática do pensamento, da especulação, da reflexão, se mistura como objeto do ressentimento racial em geral, e isso é muito lógico que aconteça. E, portanto, produz um certo anti-intelectualismo difuso, “esse papo cabeça é coisa de branco”, sabe? Isso é uma barreira considerável. E só se dilui com formação, não tem jeito. É preciso distribuir ferramentas.

Outra coisa que sinto também como um problema é a falta de consenso sobre a formação como ideia central no processo de reparação racial. Educação. É por isso que me parece o mais cruel dos mecanismos essa coisa de ficar falando para todo artista negro que ele é “um gênio”, ao invés de conversar verdadeiramente. Isso cria monstros tristes porque não produz treino reflexivo. “O dia em que vamos discutir com verdade e sinceridade” nunca vai chegar, ele é agora. Escrevi um texto endereçado para o Heitor Augusto que o subtítulo era algo como “tudo ao mesmo tempo”. Essa simultaneidade é essencial. Todos somos pessoas sensíveis, perceptivas. E nosso dever cidadão é usar nossa sensibilidade. E a coisa se adensa quando a minha percepção toca a sua, e quando a sua toca um filme: essa energia precisa ser compartilhada. E aí, esse represamento da “expressão verdadeira”, de uma fala sincera sobre as coisas, e mais essas "forçações de barra”, vai criando artistas que não sabem pra onde ir. E precisam fingir que sabem, nas selfies postadas. Desabituados de trocar de verdade, se afogam de si mesmos.

Por exemplo, isso rola quando um artista recebe uma negativa de qualquer coisa e não sabe digerir o que aconteceu: “nossa, sempre falaram que eu era muito foda, como essa instituição não me aceitou?”. É claro que o racismo trabalha nos processos institucionais em níveis variados. Porém, o ressentimento é a principal armadilha do processo psíquico racial. E aí esse artista não vai saber o próximo passo, não sabe seguir - e o racismo tem a forma do looping, né? E aí não vai ter nenhum sinal exterior do que esta artista faz bem e do que faz pior. Nós criamos um ambiente mimado. Porque vivemos num mundo mimado, portanto isso era esperado. A criança mimada se torna destrutiva porque ela nunca descobre o próprio contorno, portanto ela só vai, em busca inconsciente de um limite para si. 

Vou dar um exemplo deste processo no nosso campo: o Kbela (Yasmin Thayná, 2015) é um curta muito interessante feito aqui no Rio de Janeiro, que acabou tendo uma circulação muito particular para um curta: produziu sessões lotadas num cinema tradicional aqui da cidade, o Odeon, e depois circulou por festivais no Brasil e no exterior. E isso feito por uma cineasta muito jovem, estudante de cinema na PUC (onde estudei também). De certa forma, ele foi marcante para o período histórico, foi um filme emblemático, abordando questões ligadas à racialidade sem ser narrativo no modelo “storytelling”, sabe? 

Pro campo do cinema negro, acabou sendo paradigmático, porém, é um primeiro filme de uma realizadora super jovem. Fico feliz, por exemplo, que Yasmin Thayná esteja trabalhando hoje. Não somos próximos, mas eu acho que está. Isso é muito bom. Porém, acho que ela foi um exemplo deste processo. Ela fez um curta na faculdade, organizou bem a divulgação do filme, encheu duas vezes um cinema de 700 lugares com um curta. Isso é maravilhoso, em todos os sentidos, em termos de produção, de divulgação, novos métodos e caminhos, e o Kbela é um bom filme, cheio de qualidades inventivas. Mas o circuito ao redor tem sede de heróis, e aí pegaram ela e o filme dela pra ocupar esse imaginário, sabe? Um imaginário de excepcionalidade.

O racismo, o que ele faz, é um processo de separação, de desvinculação. Esta pode ser “positiva” ou “negativa”. Quando os brancos vem falar comigo daquele jeitão, sobre qualquer pessoa negra, dizendo “nossa, ela é uma deusa (negra)...” Sinto o mesmo material emocional da injúria, só que com sinal invertido. Fanon analisou isso, né? E aí, uma jovem cineasta universitária se torna uma “deusa”, vira colunista de jornal, a salvação para todos os males. O processo racial faz isso, te tira do plano do igual, ou monstro ou deus, nós “as forças da natureza”. E aí, ela faz Fartura (2019). Pô, o Fartura é um filme de uma universitária. Desigual, um pouco difuso, com opções de montagem que me parecem discutíveis. Só que isso é normal, é um fato condizente. Só que a normalidade não interessa a esse ambiente, que ela seja uma igual, que seja o que é, uma cineasta jovem, ligada a certo contexto.

Meu sonho é que as pesquisas do Kbela pudessem gerar outra tentativa de filme, a estrutura performativa, aquela espécie de teatro de revista meio delirante, porque aquilo é belíssimo, se liga com muita coisa do cinema brasileiro. Mas o processo de “produção de divindades” é um processo de separação, fetichização (portanto, de criação de mercadorias). Soa impróprio fazer ligações com o que é divinizado, demarcar continuidades. Vai soar ofensivo, entende? Porque tudo fica meio “altarizado”, meio incomparável. A crítica, como gesto e como ação, precisa comparar, perguntar, testar. E aí, como o racismo atua muito negando o reconhecimento subjetivo, e naturalmente há um acoplamento obra-artista, comparar um filme vira comparar “alguém”, sabe? É por isso que é necessária certa materialidade nas análises. Porque um filme é algo exterior, um objeto de troca, onde muita coisa se insere ali, deixando marcas variadas. E nós, críticos, precisamos arriscar generalizações (outro pecado!). Por que precisamos? Justamente para criar ideias úteis, que possam ser ferramentas em mais de um caso. 

A unicidade absoluta é o fim da coletividade das ideias e da teoria. Por isso o narcisismo e individualização excessiva atual são nossos maiores inimigos. O “ego negro” é um problema político altamente complexo. E, como tal, deve ser encarado de frente, pensado. Porque é necessário, para enfrentar as barreiras raciais, criar uma certa insensibilidade. Vulnerabilidade é sinônimo de sensibilidade. Portanto, a proteção disso é o que se chama de “autoestima delirante”. Essa coisa de “forçar uma barra” sobre o próprio valor, para poder atravessar as situações da vida. Porém, toda ferramenta psíquica, uma vez forjada, tende a ficar, a se automatizar e repetir-se. E para criar uma comunidade de trocas verdadeiras, essa couraça do “sou foda” precisa ter alguma fenda. E o problema dela é que ela não resiste bem às más notícias. Cai e se espatifa. Hábito e diálogo crítico comprometido ensinam a cair, criam chãos possíveis.

Uma comunidade negra fortemente reflexiva em relação à arte - que é o que defendo - preparará a todos para as más notícias, dando elementos verdadeiros, verificáveis, e não paranoicos. Dei muita sorte nisso. Porque me criei em ambientes onde criticavam meu trabalho. Tive sempre ótimos editores. As pessoas só começaram a me elogiar depois dos 35 anos. Isso ajuda muito na saúde. Tenho alguma ideia das coisas que tendo a fazer pior, das minhas dificuldades. Então, quando dá errado, em geral, não caio da torre de cara no chão. Tenho alguns elementos para sacar, hipóteses terrenas, que me ajudam a organizar internamente as más noticias sobre meu trabalho, as frustrações, os nãos... Porque senão só ficamos variando no looping maníaco depressivo (“sou foda/sou um merda”), e esse sistema breca o desenvolvimento, sabe? E esse é o modelodo capitalismo informacional. O maníaco depressivo é o usuário padrão. E o pólo depressivo produz espectadores assíduos, “maratonando” constantemente, autômatos.

Como o cenário do cinema brasileiro contemporâneo interfere em sua escrita crítica?

O cenário do cinema brasileiro contemporâneo é a base da minha prática crítica. Não quero dizer o cenário “atual” somente. Mas o cenário no sentido do teatro mesmo, a montagem, o ambiente criado, as peças, as histórias. Minha prática é absolutamente condicionada à vivência do cinema brasileiro. Ele e suas dimensões são o centro das minhas preocupações e do que sinto que seja minha responsabilidade - ou melhor -, do que sinto que seja o que de melhor meu trabalho pode oferecer. Meus 20 anos foram em outro cenário, de discussões um pouco diferentes e de condições um pouco diferentes. Governos do PT, editais, festivais, distribuição, as discussões sobre cinema de coletivos, baixo orçamento, novos métodos de produção, financiamento para um cinema que não prioriza o lucro financeiro… É engraçado a mudança de ambiente e de conversas.

Falava outro dia no podcast Cinema em Transe: minha geração tem vergonha de se vender, sabe? De fazer posts com o próprio tuíte, tá ligado?. A geração de vocês, de vinte anos, não me parece ter problema com isso. Lembro quando Tom Zé foi execrado, em 2012, por fazer a narração de uma propaganda da Coca Cola. O Tom Zé! Ouçam o disco dele, Tribunal do Facebook. O Brasil coloca essas situações né, por exemplo: Tom Zé ser branco. Mas enfim, a Djamila Ribeiro faz propaganda de empresa uberizada e uísque europeu. Acho interessante como fenômeno. Merece reflexão. Sem moralismos aqui. Na minha geração, nos meus 20 anos, o Luís Carlos Oliveira Junior escreveu um texto que foi marcante chamado “A Publicidade Venceu”, na Contracampo. Nem vou entrar aqui nele, mas é claramente retrato de um outro ambiente de discussões. Não vai ter problema nenhum pra quem acompanha o trabalho de vocês, se vocês aceitarem um patrocínio da Amazon, né? Então, o ambiente mudou. Ele ficou de certa forma, em termos de discurso, mais “politizado”. Mas ficou mais generoso e acolhedor com a publicidade e o capitalismo. Porque será?

Isso é interessante, né? Aí todas as produtoras endinheiradas de São Paulo procuram constantemente uma ou duas pessoas negras, trans e indígenas, porque elas precisam da fachada colorida. Aí chamam essas pessoas de “geniais”, aquela coisa e tal, e aí, já sabemos, né? Uma hora elas caem da torre e se espatifam. Falo com meus amigos brancos que o melhor que eles podem fazer é ter coragem de se expor e falar a verdade, porque isso é partilha de conhecimento, pô. Foda-se que a jovem cineasta negra vai achar que você viu fragilidades no filme dela porque você é branco. Faço um chamado para as pessoas brancas que mostrem a cara contribuindo nesse sentido. Lugar de fala virou o esconderijo ideal. Quem tem sobrando deve se arriscar. Mas a política de fachada/linguagem/representação/reputação é muito perniciosa. E ela funciona impedindo que as discussões nunca caminhem, porque aprofundar “não é urgente”, inflando a dimensão simbólica e “esquecendo” os aspectos mais materiais. Quem gosta de urgência é o capitalismo: “compre agora”. 

Os povos indígenas têm urgência? De que tipo? Os caras tão vendo o processo de destruição deles há séculos. Precisamos aprender com eles. Esse papo de urgência é retórica de coerção. Os fenômenos são complexos, pô, precisamos parar para pensá-los. Vai numa aldeia ver o quanto de tempo é usado para sentar e conversar sobre o que acontece. Isso é uma espécie de cultura crítica, acho. E com pressa, urgência, penso mil vezes pior, me faz mal, aproveito uma parcela pequena da minha capacidade e sensibilidade. Acho que há muitos pares falsos por aí: “cinema x mundo”, “urgência x não urgência”, são binarismos fragilíssimos, sabe? O cinema brasileiro mudou bastante nessa década de 2010. Precisamos pensar muito! Seria necessário fomentar uma geração hábil em lidar com as novas situações e configurações do político. Mas a crítica não é “urgente”. Entretanto, todo mundo ia ganhar ao enfatizarmos isso. 

Rola bastante no ar uma coisa de que “os brancos não entendem o que fazemos” por parte da comunidade negra de cinema. Vocês não acham? Mas o que estamos fazendo então para formar quem “entende”? Era preciso, por exemplo, fazer uma bolsa anual – não é caro – com cinco, dez pessoas fazendo um texto crítico por semana durante um ano. Tendo encontros com pessoas que trabalham com pensamento e prática de filme. Imagina? Isso custa menos que o orçamento de um curta, se formos pensar num modelo de escassez. Enfim, tudo que faço parte de uma leitura de conjuntura, e de contexto brasileiro. A maior parte da energia do meu pensamento é dedicada a pensar esse cenário, a entendê-lo e a pensar que tipo de intervenção é mais fértil. Porque esse processo de separação, que falei antes, é a força oposta a essa ética do contexto, sabe? Tanto que esse pensamento e prática divinizante não se importam com o contexto. No sentido agudo, entende? 

No meu trabalho, me preocupo tanto em entender o Bolsonaro em termos de comunicação e ação, quanto em buscar o Bolsonaro em nós, em nossas ações. Por exemplo, essa coisa de criar um inimigo disforme, onipresente, que justifica todos nossos atos, que nos valida como respondedores paranoicos. Isso é bolsonarismo, e de fato se relaciona naturalmente à paranoia racial. A ideia de haver brancos, automaticamente pode dignificar qualquer ato que façamos, né? Isso é um problema. E essa é uma estratégia retórica comum: “somos heróis por estarmos vivos”. Sim e não, né? Porque esse é o problema, a frase não está errada, o problema é o que vem depois. Bolsonaridade fala “viva a liberdade”, mas ele tá querendo é abrir espaço para difundir ódio. Então é importante atentar para estes processos, entre as palavras e as coisas. Enfim, estou falando de implicação - e não de implicância. Nós somos o contexto onde Bolsonaro é possível, onde o nazismo avança: o que nossa prática tem a ver com isso? Que valores produzimos? Não quero me salvar, não quero sair limpinho, quero achar as zonas de disputa onde práticas análogas se dão no campo do cinema brasileiro. 

A minoridade é uma situação relativa sempre, exige uma sensibilidade ativa e dinâmica. Não adianta tornar estática nem mesmo a ideia de pertencimento racial. Porque não é. Em Belém é uma coisa quem é negro, no Mato Grosso, outra coisa, no Recôncavo, uma outra, em Vitória, uma outra. E assim vai. O trabalho é difícil mesmo, cansa, exige cuidado, exaure a cabeça. Então, nada em assuntos raciais funciona bem com uma episteme estática e essencialista. Não vai dar conta. O Brasil é um conjunto gigante. Dinâmico. Crítica é treinar pensar o movimento. E pode ser prazeroso.

Qual o seu projeto na crítica de cinema?

Primeiro de tudo, meu projeto não é meu. É a continuidade e confluência de vários outros. Não só de quem produz diretamente reflexões, mas de artistas também. Então é continuidade de Torquato Neto, Paulo Emílio Salles Gomes, Gilda de Mello e Souza, Chaplin Club, Jairo Ferreira, Andy Warhol, Glauber, Maurice Blanchot, Arthur Jafa, Bispo do Rosário, Clarice Lispector, Fred Moten, Eisenstein, Claire Denis, Leda Maria Martins, Jean Rouch, Paulo César Saraceni, Buñuel, Marie Menken, Jonas Mekas, Carolina Maria de Jesus, Jorge Ben, Maya Deren, Hélio, Lygia Clark, Flávio de Carvalho, Lúcio Cardoso, Grande Otelo, Lima Barreto, enfim, poderia continuar essa lista para sempre. 

Mas queria destacar o “meu”, a ênfase em não ter “meu”. Porque meu projeto é de esquerda e talvez, acima de tudo, seja contra a ideia de propriedade, em seu sentido mais amplo. O conceito de propriedade é um conceito da escravidão. Então, este é um abolicionismo que acho importante. E isso influencia a prática. Se não há propriedade, posso mexer, montar, comparar, fazer coisas inusitadas, inapropriadas, entende? Acho que a ideia de impropriedade é uma que podemos chamar de “negra”. Não tô falando aqui de exclusividade, mas dessa afinidade, saca? 

O impróprio, o descabido, o errado, essa é a turma que me interessa, é o território ético-teórico em que aposto como matriz de uma experiência negra, dinâmica e múltipla. Essa tendência despossessiva para desafinar o coro dos contentes, sabe? Daí, minhas ferramentas vêm de outras artes. E cada vez mais da música, porque acho uma arte onde pessoas negras construíram uma enorme contribuição metodológica. E tenho me interessado pela pretitude como método, prática, sabe? 

Esse negócio de “ser” é algo muito metafísico. Não estou interessado em alma, pureza. Tô por aqui com as “belas almas” - como diz o Francis Vogner. Desejar ser (e parecer) uma “alma bela” fode tudo. O terreno da moralidade me parece improdutivo, e no fim das contas, branco, cristão, entende? Culpa, expiação. E, no Brasil, os métodos negros se inscrustaram em nossa sociablidade, talvez, como em nenhum outro lugar. Nós somos uma potência em potencial (rsrsrs) da crítica negra no mundo. Mas os patrocinadores e as instituições se importam pouco, só querem mesmo pintar de negro e arco íris a fachada (“a cara do crime”, diria precisamente o MC Poze do Rodo). 

 

Frame de “Uma noite sem lua” (2020), de Castiel Vitorino Brasileiro

 

As ideias que guiam meu trabalho são sempre de natureza relacional: tecer ligações entre as coisas, porque uma puxa a outra, especialmente as ligações “perigosas”. Como outro dia eu estava fazendo entre Glauber Rocha e Castiel Vitorino, a partir da vinheta do podcast Cinema em Transe. Acho que é daí que sai coisa. Quero trabalhar para juntar quem gosta dela com quem gosta dele. A coisa mais emocionante na vida é descobrir afinidades. A métrica que uso passa por aí. E venho muito ligado a uma linhagem, que já tem mais de vinte anos, que tem a ver com a Contracampo, com a Cinética, de crítica independente mesmo, que valoriza a seriedade com as ideias a qualquer custo, de não ceder às tentações do consumo - isso deve ser papo de coroa hoje em dia, né? Cringe

Mas, no geral, sinto que o Brasil tem muito pensamento, ainda que um pouco disperso, sobre as contradições da condição colonial. Então, um dos guias que uso é buscar diminuir a dispersão, fortalecer as ligações, mantendo a impropriedade ativa, sabe? Valorizando os pertencimentos limítrofes. É massa porque minha identidade racial tem a ver com isso... Tenho pele clara. Meu pai é branco. Isso pra mim acaba sendo ferramenta reflexiva também. Essa situação tensa, instável de pertencimento. Essa coisa “pé dentro, pé fora”, como diz o samba de roda, é um mote reflexivo, sabe? Me interesso pelas ideias que dançam, que cultivam algo de informe.

Por isso me interessa sempre, em alguma medida, o cinema que “não é cinema”, sabe? Tenho carinho especial pelo que tende a ficar emaranhado na cerca elétrica que divide as coisas, abandonado aos choques. Então, desejo pensar junto ao funk, aos filmes de internet, não pra isolá-los, mas para misturar junto na panela, porque na casa minha vó a comida é sempre mais do que a conta certa. Portanto, me interessa a obra, esse excesso. O excesso não é urgente, sabe? O excesso que a gente compartilha, “moda casual de luxo”, é por aí… 

Sinto que essa questão que vocês colocam é uma forma de perguntar o que meu trabalho prioriza, né? Porque crítica tem a ver com uma certa fome de tudo… Então, algo que pra mim é central como interesse é essa tendência de inversão dos processos técnicos, de inventividade metodológica que atravessa métodos negros de expressão, uma certa tranquilidade em combinar coisas heterogêneas (falo desde funk carioca, até as combinações de capulanas estampadas). Me interessam as zonas limítrofes, essas coisa de ser/não ser, estar/não estar. Que são problemas conceituais muito negros, na medida em que o racismo produz “não existência social”. Porém, existimos. E aí? Faz o quê? Esse tipo de paradoxo vive e age nas obras. Esse é o paradoxo da imagem cinematográfica: ao mesmo tempo ser e não ser a coisa. E isso é o que mais me interessa, sabe? As táticas de transmutação dos processos sociais em métodos poéticos. 

Quando você pega “Que tiro foi esse”, da Jojo Toddynho, por exemplo. Mano, eles estão transcriando a morte negra, pô... Alguém está tomando um tiro, o corpo cai… Mas levanta! Aí que tá. O curta do Jafa, Love is the message and the message is death (2016), é sobre isso. Então, a forma dessas oscilações me interessa. Cinema é oscilação. Quem corrige e cria continuidade é um defeito do olho humano. O defeito nos salva.

Então, o “meu” projeto é guiado por um tesão pela indecidibilidade entre registros e pela ambiguidade em geral, porque ambiguidade é multiplicidade. As coisas mais fortes são as que fazem mais de um processo ao mesmo tempo, as que têm mais de um sentido, as que dizem mais de uma coisa, sabe? E o processo das obras é infinito e impessoal. Um coisa vaza na outra: empiricamente, há uma permeabilidade crônica: uma música continua a outra, cita a outra, recita, numa espécie de assunto comum (em geral, na música negra, travestido da própria festa, ou dança, tematizada, ou o próprio acontecimento da experiência da música e da festa). Na arquitetura da casa negra, tudo entra e se mistura, o barulho de todo mundo. É nessa atmosfera que o pensamento pode frutificar de maneiras surpreendentes. Tô sempre curioso pelo futuro do silêncio. Somos o excesso, portanto honremos essa sina.

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