Uma história de um ex-crítico

por Heitor Augusto | Wed Jun 15 2022 16:33:39 GMT+0000 (Coordinated Universal Time)

And once upon a time, in a city so divine

Called West Side Compton, there stood a little nigga

He was five-foot somethin', God bless the kid

Took his homies to the show and this is what they said: 

Kendrick Lamar. “Institutionalized”. To Pimp a Butterfly. 2015

 

Lembro que quando eu comecei a escrever críticas, iniciar um texto com uma citação me parecia sinal de inteligência e erudição. “Se os caras das revistas eletrônicas escrevem assim, e esses caras são, tipo, uau, inteligentes pra caralho, então é assim que uma crítica é, não?”. Cá começo essa narração repetindo o formato. O espírito, contudo, é completamente distinto dos porquês de uma década e meia atrás. O desejo de impressionar já morreu há séculos, não sei nem onde ele foi enterrado. A necessidade de ser legitimado também. Eu tô em casa, numa casa que inventei pra mim. Batalhei muito para construir e habitar uma casa onde minhas formas de ver, sentir e fazer estivessem seguras. Assim, decidi trazer esses versos do Kendrick - porque eles falam sobre mim, ainda que eu não seja de Compton e tenha muito mais que um metro e sessenta e pouco de altura.

Comecei a escrever críticas porque queria entender por quais motivos um filme mexia tanto comigo. Nunca quis fazer filmes, jamais fantasiei em pegar numa câmera ou gritar “ação!”. Eu queria compreender o que tornava o ato de assistir a um filme uma experiência afetiva e intelectual, sensorial e racional. Minha fome por forma fílmica surgiu dessa curiosidade e muito antecedeu o entendimento das implicações do debate forma x conteúdo no pensamento ocidental acerca das artes. Agora, em retrospecto, percebo que minha subjetividade necessita entender as coisas, delinear os porquês, acompanhar o caminho de uma ideia, um pensamento, um sentimento, um movimento. Me alimento disso.

Ainda que a forma fílmica estivesse no centro do meu desejo de compreensão, não atendia ao perfil de cinéfilo. Quer dizer, no meu coração eu vivia uma relação com os filmes similar à de Truffaut - marcada por devoção, idiossincrasia e uma esperança não-dita de que o cinema iria me entender. Mas eu não cresci vendo “filmes bons”. Me formei com a televisão aberta. Ir ao cinema na adolescência era um evento raro e quase sempre implicava assistir ao blockbuster do momento. Descobri os autores – e o próprio cinema de autor – de forma bastante desorganizada. Talvez por isso, mesmo anos depois, quando eu já estava “inserido”, me irritava enormemente com o hábito cinéfilo de ranquear filmes de um certo autor e disputar posições como numa corrida de Fórmula 1 ou na competição por uma medalha na Olimpíada do “Eu Sei Mais Sobre Fulano Que Você”.

Conto aqui para vocês uma história sobre minha trajetória na condição de ex-crítico, contudo. O que antes era minha identidade transformou-se numa espécie de legado que informa conscientemente minha prática reflexiva no cinema – e também em outras arenas menos evidentes.

 

Frame do curta-metragem Tá (Felipe Sholl, 2007)

 

 

Um começo: 2007-2011

 

Tenho um apreço pelas oficinas de crítica como espaço de formação. Por anos ministrei esse tipo de atividade. Antes disso, contudo, sou, em parte, fruto desses espaços. Meu primeiro texto crítico foi produzido em agosto de 2007 durante o “Crítica Curta”, oficina hospedada no 18º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo. Escrevi sobre (Felipe Sholl, 2007). O texto é pavoroso, sem identidade e não tem uma ideia boa sequer. Ainda assim, não fosse esse texto aí, eu não teria construído uma carreira que em alguns meses alcançará quinze anos! 

A primeira experiência profissional na crítica veio no comecinho de 2008, quando fui contratado pela Revista de Cinema. Ali eu acumulava as funções de estagiário, redator, jornalista e eventual crítico. Foi essa experiência que me inseriu formalmente no circuito de festivais. Essa inserção trouxe também meu primeiro encontro com as dinâmicas de poder das supostas vozes de autoridade na crítica – racismo e ansiedades do homem-velho-branco-cis foram o prato principal do menu de violência.  

Algumas entrevistas, resenhas e cobertura de festivais depois, em outubro de 2008, fui parar no Cineclick, um site de entretenimento. Estava a dias de completar 23 anos e a dois meses de finalizar minha primeira jornada no curso de jornalismo da PUC-SP. No Cineclick, eu virei uma espécie de especialista em “filmes difíceis” e “filmes sem pé nem cabeça”. Dava conta do cinema brasileiro que estava sendo gestado e apresentado pela Mostra de Cinema de Tiradentes; recuperava clássicos e os reapresentava para o público; respondia a qualquer produção contemporânea que caísse na classificação de “cinema de autor” – de Eastwood a Ozon. Ainda assim, escrevia sobre tudo. T-u-d-i-n-h-o mesmo ¹. E com uma seriedade que até hoje me impressiona. À época, na condição de um jovem adulto tentando construir uma voz, achava insuportável ter de responder a filmes que estavam empurrando o cinema para trás. Hoje, contudo, vejo que essa experiência de três anos como um operário da escrita crítica me fez desenvolver versatilidade.

Os primeiros quatro anos da minha prática coincidiram com um momento bastante particular do cinema brasileiro. As transformações tecnológicas haviam facilitado a captura de imagens e a feitura de filmes. As políticas de fomento promoviam a descentralização fora dos eixos. Os coletivos audiovisuais se espalhavam, entregando filmes realizados de modo colaborativo ². A Mostra de Tiradentes já havia criado a subdivisão “Mostra Aurora”, que estabeleceria a janela – e o fato político – para jovens realizadores em seus primeiros longas. “Cinema de dispositivo”, “cinema de afeto”, “filme híbrido”, “esgotamento do registro do real” e “cinema pós-industrial” eram alguns dos termos do debate naquele momento.

Classe e as intersecções com identidade periférica estavam fortemente presentes nas autorias do cinema brasileiro daquele intervalo entre 2007 e 2011. Raça, não – exceto as exceções. André Novais Oliveira e Gabriel Martins não eram necessariamente percebidos como realizadores negros. A distribuição de Aquém das nuvens (2010), curta de graduação de Renata Martins, não foi sequer sombras da recepção a Sem Asas (2019). O Encontro de Cinema Negro ainda não tinha Zózimo no título e aos poucos fincava as duas pernas no Rio. Os curtas de Lilian Solá Santiago e Carmen Luz circulavam quase sempre em espaços tidos como “de nicho”. Um silêncio se seguiu aos dois primeiros curtas de Danddara, Gurufim na Mangueira (2000) e Cinema de preto (2004). Cristina Amaral ainda não havia se tornado um patrimônio nosso. A movimentação criada pelo Cinema Feijoada havia se esvaído³.

À essa época, minha prática crítica estava longe de ser racializada. Na minha jornada como pessoa, não tive de me tornar negro. Tinha consciência de sê-lo desde pequeno. A existência do racismo foi contada dentro de casa e sentida na rua. Ainda assim, percebo um malabarismo que me fez manter separadas essas duas dimensões, como bolhas sem vias de comunicação: quem eu sou no mundo x quem eu sou escrevendo sobre filmes. Na adolescência e começo da idade adulta, eu tinha muita dor e muita raiva, mas não sabia o que fazer com elas. Esses sentimentos me moviam – para onde eu não sei. Hoje o que me move é o desejo. Felizmente reconstruí minha subjetividade de forma a integrar os muitos “eus”. Minha cabeça não mais é uma loja de departamentos. 

Frame de Sweet Sweetback's Baadasssss Song (Melvin Van Peebles, 1971)

 

 

Cheguei a casa, mas a casa caiu: 2011-2014

 

Em novembro de 2011, Sérgio Alpendre colocou na rua a Interlúdio, revista eletrônica que almejava recuperar a alma da extinta Paisà. Fiz parte da redação desde o primeiro número e essa experiência teve impactos profundos. Injetei cinema de autor na veia. Escrever sobre o universo de gente como Tsai Ming-liang, Fassbinder e Coppola me fez intensificar os estudos e apurar ainda mais a minha habilidade de apreender por meio da forma. Acima de tudo, essa experiência contou para mim que eu sabia jogar o game nas regras dos garotos.

Esse período coincidiu com a minha solidificação como alguém que pensa imagens ao longo da história. Tornei-me pesquisador independente. Lecionei sobre muitos assuntos, autores, períodos, recortes. Muitos mesmo ⁴. Me formei também dando aulas em cursos livres. Nesse intervalo também ministrei inúmeras oficinas de crítica e contribui para a formação de muita gente. Viajei por diversos festivais no Brasil e perdi as contas de quantas vezes falei sobre Da Abjeção, do Rivette, ou de quantos textos críticos corrigi. Quem me conhece na intimidade hoje sabe que eu tenho alma de professor. Compartilhar conhecimentos lecionando e dividir formas de ver por meio da escrita foram meus alimentos por anos. 

Com o passar dos anos, o que antes era sensação de ter encontrado a minha turma se transformou num imenso desconforto. Ser o único preto do rolê passou a ser um problema. O fosso entre ser preto x racialização da prática tornou-se inadministrável. Eu já havia descoberto o cinema Blaxploitation e carregava comigo há tempos filmes como Sweet Sweetback's Baadasssss Song (Melvin Van Peebles, 1971) e Shaft (Gordon Parks, 1971). A fuga contínua no filme de Van Peebles ressoava imensamente comigo, assim como o desejo de assertividade que eu enxergava no trabalho de Parks.

 

Aí veio 2015.

 

Frame de Dear White People (Justin Simien, 2014)

 

 

Cavando mato: 2015-2016

 

Em fevereiro de 2015, fui parar na Berlinale como um dos participantes do “Talent Press”, programa para jovens críticos do mundo todo. “Jovem” aos 29 e “jovem crítico” com oito anos de experiência. Assim que retornei ao Brasil, em março, comecei minha segunda graduação: Ciências Sociais na USP. Não durei seis meses no curso, mas isso pouco importa e nada me dói. Não foi no curso que encontrei o que buscava. Ainda assim, as dúvidas me fizeram achar os Estudos Culturais. Foi a primeira vez que pude atravessar de maneira organizada a escrita crítica com conhecimentos que “não” são do cinema – ou assim se dizia à época. Ter descoberto Plantation Memories da Grada e O Atlântico negro do Gilroy, além de ter finalmente lido com atenção Da diáspora, do Stuart Hall, mudou o jogo pra mim. 

Esse foi meu último ano de Interlúdio. Ao longo de 2015, ensaiei as primeiras notas de algo que se confirmaria nos anos seguintes: os circuitos, os filmes e as formas de falar sobre eles, ou seja, todo o pacote que me mobilizava desde 2007, não mais me interessava. Foi durante a escrita deste texto que percebi como aquele ano fez com que eu desse passos firmes rumo a um próximo capítulo da minha prática. Buscando organizar uma cronologia:

* Março de 2015: na crítica de Selma: uma luta pela igualdade ⁵ escrevo pela primeira vez acerca da política da respeitabilidade dentro da comunidade negra, assunto que me mobiliza até hoje, março de 2022.

* Agosto de 2015: por meio da crítica sobre Dear White People elaboro, por vias indiretas, o quanto de negociações tive de fazer pela fantasia do pertencimento ao clube dos meninos que sabem sobre filmes ⁶.

* Setembro de 2015: traduzo para o português o ensaio “Responsabilidades de um crítico gay de cinema”, escrito por Robin Wood em 1978 ⁷. É a primeira vez que endereço política identitária e prática crítica, mas pelo prisma da sexualidade.

* Dezembro de 2015: escrevo um ensaio sobre a mostra “Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica” ⁸, por meio da qual entrei em contato com o trabalho de Kênia Freitas, hoje amiga e interlocutora.

 

Em 2016, segui ministrando muitas oficinas e trabalhando como curador. Contudo, quase ninguém do cinema sabia que eu estava passando por uma severa crise com meu trabalho. No ano anterior, eu havia nomeado meus desconfortos e explorado rascunhos dos meus interesses. Mas, para onde ir? Nove anos construindo uma relação que não mais tinha sentido. Imagina o sentimento de desolamento?

Eu precisava de um lugar para mim. O Urso de Lata, até então um blog no qual postava reflexões que não cabiam nos veículos para os quais eu escrevia, tornou-se meu espaço de reflexão. Ali eu não precisava medir palavras. Não tinha razão para temer os pares. Sinto que ali, naquele momento, foi a primeira vez eu que pude escrever livremente, sem sentir sobre meus ombros olhares pesados. 

Para poder achar um lugar eu tive de simplesmente inventá-lo. Essa invenção transformou totalmente as contribuições que eu viria a dar.

 

Imagem de Alma no Olho (Zózimo Bulbul, 1974)

 

 

No olho do furacão: 2017-18

 

Até 2011, tive a crítica de cinema como única identidade profissional. Em seguida, vieram o ensino e a pesquisa, acontecimentos que já destaquei acima. Em 2013, quase que por acidente, surgiu um ofício que gradualmente arrefeceu a urgência da escrita: descobri a curadoria e programação de filmes.

O primeiro trabalho foi para o Festival MIMO de Cinema. Segui como um dos programadores até 2015. Até então, eu não refletia muito sobre as especificidades da programação. A trajetória de crítico me autorizava a exercer esse ofício, assim o pensava. Curadoria, naquele momento, era nada mais que uma forma de expressar uma visão de cinema pautada pela prática crítica. 

Em novembro de 2015, vivi minha primeira experiência racializada de curadoria, na condição de programador da sessão “Cineastas Negros Falam”, no Sesc Santo Amaro, em São Paulo. Projeto pequeno e pontual, mas importante. Fuçando a memória, lembro que a ideia de tornar visível trajetórias e trabalhos era premente. A presença da “fala” no título da sessão já denuncia uma certa abordagem que prioriza o direito à voz e à escuta. Acho maravilhoso que tal forma de ver tenha envelhecido tão rápido. Melhoramos, viu?

É difícil falar dos anos de 2017 e 2018 em tão pouco espaço. Foram muitos eventos. Cada acontecimento engendrou inúmeras subtramas. É também um desafio encontrar um equilíbrio entre reconhecer a importância da minha atuação, mas escapar da tentação egóica de monopolizar os holofotes. Espero não perder a mão nos próximos parágrafos. A existência de outros textos nesta publicação pode contrapor essa história que estou contando.

Começo abordando os eventos que resultariam no texto “Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?” ⁹. Em janeiro de 2017, fui convidado para ser júri da Mostra de Cinema de Tiradentes. No pacote, topei participar da mesa de abertura, intitulada “Cinema em reação, cinema em reinvenção: questões de representatividade e proposta estética”. Minha intuição me fazia escutar um “É uma cilada, Bino!” ao mirar o enquadramento da discussão. Antecipava uma possibilidade de encaixotamento da minha participação: eu seria o cara das questões políticas, enquanto outras pessoas teriam autoridade sobre a estética. Passei dias agoniado pensando em como evitar essa forma de imobilização. 

Driblando a ansiedade e o temor, cheguei à raiz do meu argumento: precisamos rever quem são os sujeitos que miram os filmes, pois a “questão” está no olhar do lado de cá, não nos filmes. Revisitando aquela manhã, reconheço que as ideias que sustentaram minha participação naquele debate eram relativamente simples. O esteio do argumento tem alguns pontos de contato com o que ficou popularmente conhecido como “lugar de fala”, conceito com o qual joguei estrategicamente por um certo período. Minha intervenção também tangenciava formulações antigas, tais como forma versus conteúdo.

Ainda assim, entendo que uma contribuição sobrevive: essa participação na mesa em Tiradentes, e a subsequente decisão de publicá-la em forma de texto, chamou o campo do cinema para o embate; descentralizou as vozes que ocupavam os tronos de autoridade e convocou para uma atenção aos filmes de pessoas pretas. Cinco anos depois, ainda considero historicamente relevante esse debate-texto, ainda que um outro texto meu escrito no ano seguinte ¹⁰ tenha aparentemente disparado mais coisas.

 

*

 

O segundo evento desse intervalo temporal foi o 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, no qual atuei como um dos programadores de longas-metragens. Meu primeiro trabalho grande no ofício curatorial se deu num espaço desracializado ¹¹, com a presença pontual de um programador negro – eu – e com uma chegada mais forte de obras negras. Foi o ano em que, entre outras obras, o festival exibiu Café com Canela (Ary Rosa, Glenda Nicácio, 2017).

Em diferentes oficinas sobre curadoria e programação, abordei minha participação na jornada curatorial que levou o longa do recôncavo baiano para a mostra competitiva. Não irei repeti-la aqui. Em vez disso, trago ênfase para os debates oficiais do festival ao redor desse longa, mas também dos curtas Nada (Gabriel Martins, 2017) e Peripatético (Jessica Queiroz, 2017) e do longa Vazante (Daniela Thomas, 2017). As manhãs e inícios de tardes numa das salas do Hotel Meliá foram as primeiras em que eu vi uma presença massiva e de potência estrondosa de vozes pretas num evento de cinema desracializado. A sensação era de panela de pressão. Não fossem as reflexões e intervenções dessas pessoas, aquela edição não teria se tornado um enclave para o cinema brasileiro ¹²

Ainda sobre esse evento, mirando em retrospecto, arrisco-me a dizer que Café com canela tenha solidificado a legitimação da ideia de cura das subjetividades negras como mérito intrínseco de um filme. Para o bem e para o mal.

 

*

 

 

O terceiro evento é a pesquisa curatorial que resultou na mostra “Cinema negro: capítulos de uma história fragmentada”, realizada entre 13 e 17 de agosto de 2018 no 20º FestCurtasBH. Com a exibição de 25 curtas realizados por pessoas negras entre 1973 e 2018, ao lado de um seminário, mesa de discussão e um extenso catálogo, a mostra segue sendo o mais profundo gesto de historicização panorâmica da direção negra no formato de curta-metragem no Brasil. As escolhas de programação, meu texto de apresentação e especialmente quais ensaios decidi trazer para o catálogo denotam visões, propostas de intervenção e gestos estratégicos. Considero pertinente endereçar algumas delas.

Estive consciente na postura de sugerir Alma no olho (Zózimo Bulbul, 1973) como “a base, a raiz” da “árvore genealógica do Cinema Negro” (AUGUSTO, 2018). Meu objetivo era nítido: assegurar, de forma irrefutável, a existência de uma história da realização negra. Uma vez garantida, contorná-la seria impossível. Quem o fizesse estaria performando o racismo. Essa teia que armei. Querem a prova da consciência do gesto? No seminário que conduzi paralelamente às sessões gastei quase uma aula inteira falando de As aventuras amorosas de um padeiro (Waldir Onofre, 1975), antítese de Alma no olho. Uma segunda prova: sugiro que mirem meus trabalhos pós-2019 e tentem encontrar em quais ocasiões desprende-se o desejo por uma paternidade/maternidade ou até mesmo a presença de uma classificação tal como a de “cinema negro”.

Eu já esperava que, no momento em que se encerrasse, a mostra se tornaria, de certa forma, ultrapassada. Se isso acontecesse significaria que ela teria sido bem-sucedida, pois implicaria: mais gente preta interpretando nossa história, menos necessidade de sobrevoos panorâmicos e mais espaço para se deter ao específico em detrimento do generalizante. Fiz essa mostra para que ela ficasse na História. Digo isso com duplo sentido. Sim, almejava que ela deixasse uma marca, que houvesse um antes e um depois e que fosse revisitada por pesquisadores daqui a 50 anos. Contudo, também desejava que ela fosse um trabalho a ser superado por outros trabalhos de pessoas mais jovens e com outras questões, tornando-a, assim, objeto de um passado. Tenho fascínio pelas dinâmicas entre o calor do presente e o empoeiramento das ideias (e dos gestos).

Eu joguei tanto com o campo do cinema quanto com o campo negro do cinema. Ambos apresentavam expectativas e desejos a serem correspondidos ou refutados. A programação reflete essa tensão entre reconhecer o que existe – filmes que foram feitos, tendências discursivas, predominâncias –, mirar os buracos e apontar terrenos que deveríamos habitar. Por exemplo, um programa ao redor do genocídio não é uma predileção do tipo de trabalho que faço, mas me pareceu indispensável. No outro lado da ponte, ter sido o primeiro a exibir Pontes sobre abismos (Aline Motta, 2017) num ambiente de cinema é uma das proposições das quais mais me orgulho.

Se fosse buscar uma síntese dessa experiência, diria que eu “tiquei” uma série de caixinhas para que curadores negres que realizassem projetos curatoriais racializados depois dessa mostra não precisassem fazê-lo. Espero que vocês sigam tornando “Cinema negro: capítulos de uma história fragmentada” cada vez mais datada. 

 

Imagem de As aventuras amorosas de um padeiro (Waldir Onofre, 1975)

 

 

Os desejos de uma pessoa: 2019-...

 

Uma vez reduzido o peso de se sentir obrigado a fazer certas coisas em prol de uma coletividade, um novo espaço se abriu na minha prática: e as minhas coisas? E as questões curatoriais que são específicas a mim? E meus gostos e desejos? O momento em que eu tive tempo para investigar essas perguntas coincidiu com uma nova construção: a fundação do NICHO 54.

Lançado para o público em novembro de 2019 como um instituto voltado para a promoção da presença de pessoas negras no audiovisual, o NICHO 54 surgiu como o encontro da trajetória de três pessoas que desejavam levar o par “cinema” e “raça” para outros territórios. Fernanda Lomba, Raul Perez e eu discutimos por cerca de oito meses o escopo da organização e de que forma ela poderia trazer uma contribuição única. Foi assim que chegamos à estrutura em três pilares: Formação, Curadoria e Mercado. Desde o NICHO NOVEMBRO 2019 a organização fez muitas – muitas! – coisas. Algumas delas visíveis, outras que se tornarão tangíveis com o passar dos anos.

Participar da construção e do trabalho cotidiano do NICHO 54 permitiu que um conjunto de interesses desabrochasse na minha prática curatorial. Nas cinco mostras que programei pelo NICHO 54 ¹³, nos últimos dois anos e meio, pude exercitar perspectivas que me inquietam, tal como a descentralização dos EUA como provedor de narrativas negras. Aprofundei meu interesse por friccionar o que espectatorialidades negras esperam de um projeto curatorial racializado. Reforcei meu desejo pela escavação das “imagens que nos trazem vergonha”, expressão que cunhei durante o seminário do FestCurtasBH em 2018. Entendi que minha vida preta me compele a estar sempre em contato – harmônico ou combativo – com as vidas negras fora do território brasileiro, o que implica trabalhar cada vez mais em ambientes internacionais.

Termino essa história de um ex-crítico compartilhando algumas coisinhas sobre quem tenho sido:

A urgência pela linha de frente do debate diminuiu. Não sinto ânsia de ser ponta de lança. O desejo de contribuir e apresentar visões, contudo, segue firme. Ando bastante em paz com me concentrar no conjunto de coisas que me interessa. Sigo cada vez mais distante das redes sociais. O “ter de” abriu espaço para o querer.

Ainda me alimenta a possibilidade de seguir contribuindo para a formação de pessoas negras. Neste texto falei relativamente pouco sobre minha presença em sala de aula, mas considero as experiências dos cursos livres um legado não-documentado do meu trabalho. Mas admito ter uma expectativa com isso: se possível, reconheçam a contribuição dada em suas formações. Talvez seja isso que uma pessoa com um pouco mais de experiência possa realisticamente almejar, não?

Gostaria de manter a interlocução com “os jovens”, essa categoria genérica e arbitrária que eu uso para dar conta de todo mundo que não chegou aos 29. Tenho uma identidade geracional muito forte, o que faz com que eu me veja sempre como “o cara que chegou ao trabalho no cinema na segunda metade da década retrasada”. Ainda assim, exercito uma troca de retroalimentação na qual não preciso centralizar o discurso. Tamojunto, mesmo que às vezes entremos numa dinâmica do “You do you and I just gon’ do mine”. 

Meu desejo de delimitar caiu drasticamente. Não me move a busca pela evidência inquestionável que comprove o porquê de “cinema negro”, “cinema preto”, “negrura/branquidade”, “Black film”, “forma negra x forma não-negra” e “autenticidade”. Parece ter sumido do meu horizonte a necessidade de dizer o que é e o que não é, o que pode ser, o que entra ou o que fica de fora.

Sigo amando falar de filmes. Fico tipo criança no parquinho bolando projetos curatoriais. Reuniões de equipes de programação – especialmente de festivais negros, tal como a experiência que estou vivendo neste momento como um dos programadores do BlackStar – me deixam extasiado.

Atribuo a mim essa categoria inventada de ex-crítico porque não posso minimizar o impacto que uma forma de ver tem na maneira que habito o mundo. Até mesmo a relação visual que construí com o basquete é influenciada pelo vocabulário da mise en scène que me foi apresentado via crítica! Ainda assim, o ato de escrever um texto nos moldes de crítica não me traz mais prazer, muito menos os modos de engajamento que ela propõe. Sinto que ambos demos um ao outro tudo que tínhamos.

Sigo sendo crítico, mas quem quiser acessar meus pensamentos críticos terá de mirar outras expressões e práticas profissionais.. 

 

 

Notas

 

1 Me divirto em reler como eu levava a sério tanto a mim quanto filmes que não mereciam essa atenção. Caso de A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 1. Não acredita? https://cineclick.uol.com.br/criticas/a-saga-crepusculo-amanhecer-parte-1

2 Para uma introdução aos principais marcadores desse momento ler: Lima, Dellani; Ikeda, Marcelo. Cinema de garagem: um inventário afetivo sobre o jovem cinema brasileiro do século XXI. Belo Horizonte/Ceará: Pórtico Silvestre, 2011. p. 18-47

3 Recomendo o relato e interpretação crítica que a documentarista e pesquisadora Lilian Solá Santiago faz do grupo Cinema Feijoada, desde as movimentações que levaram realizadores negros a se articular até os acontecimentos após o lançamento do manifesto Dogma Feijoada. Solá Santiago, Lilian. Uma mulher na feijoada: raça e gênero na disputa pela representação negra no audiovisual contemporâneo brasileiro. In: ______. Empoderadas: narrativas incontidas de mulheres negras. São Paulo: Oralituras, Spcine, Mahin Produções, 2021.

4 Essa jornada começou em maio de 2012, quando Sérgio me convidou para dividir as aulas do curso “Cinema Americano – Anos 70”, ministrado no CineSesc.

5 Augusto, Heitor. “Cinema Negro negociado”. In: Interlúdio, 16/03/2015. Disponível em < http://www.revistainterludio.com.br/?p=8182 >, acesso em 29/03/2022.

6 Augusto, Heitor. “Dear White People: cinema que não pede licença”. In: Interlúdio, 02/08/2015. Disponível em , acesso em 29/03/2015.

7 WOOD, Robin. Responsabilities of a gay film critic. Film Comment, n. 14, jan/fev 1978. Traduzido para o português por Heitor Augusto. Disponível em: , acesso em 28/03/2022

8 Augusto, Heitor. “Black to the future: cinema e Afrofuturismo”. In: Interlúdio, 16/12/2015. Disponível em , acesso em 29/03/2022.

9 Augusto, Heitor. “Problema só dos filmes ou o problema também somos nós?”. In: Urso de Lata, 09/02/2017. Disponível em < https://ursodelata.com/2017/02/09/problema-so-dos-filmes-ou-o-problema-tambem-somos-nos-mostra-de-tiradentes/ >, acesso em 28/03/2022.

10 Augusto, Heitor. “O que pode ser o cinema, e o cinema negro, brasileiro em 2018?”. In: Urso de Lata, 29/01/2018. Disponível em < https://ursodelata.com/2018/01/29/o-que-pode-ser-o-cinema-e-o-cinema-negro-brasileiro-em-2018/ >, acesso em 27/03/2022.

11 Não estive presente na sessão de 23 de agosto de 2000 que culminou no lançamento do Dogma Feijoada durante o 11º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo.

12 Singularizar nomes dentro de uma coletividade pode ser reducionista. Contudo, na minha experiência durante o festival enquanto programador, considero indispensáveis as contribuições da roteirista Francine Barbosa, da atriz Mariana Nunes e do crítico Juliano Gomes./p>

13 São elas: NICHO NOVEMBRO 2019, novembro de 2019; NICHO NOVEMBRO 2020, novembro de 2020; América negra: conversas entre as negritudes latino-americanas, maio-junho de 2021; Insurreição!, agosto-setembro de 2021; NICHO NOVEMBRO 2021, novembro de 2021.

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